O TEMPO QUE PASSA E QUE NÃO PASSA — Past Lives (2023)

— SILVIA ACOSTA —

Sylvie Le Poulichet (2) descreveu o trabalho do tempo em psicanálise em duas dimensões: um tempo que passa – a realidade, o consciente, a vida quotidiana – e um tempo que não passa – o inconsciente, as memórias, as idealizações. Ambos conversam permanentemente no nosso mundo interior, afetando mesmo a nossa projeção do futuro. Parecem mesmo coexistir sem se tocarem, até que um acontecimento mais ou menos fortuito deixa um rasto que se desvenda, que podemos seguir – se tivermos coragem – para entrar num novo território, mas que esteve sempre lá: as nossas memórias, as histórias que traçamos e contamos a nós próprios sobre o nosso passado. Poder-se-ia dizer que ninguém sai ileso desta viagem. Enfrentamos as nossas memórias e também o nosso presente na solidão. Aí estamos nós, é assim que éramos, é assim que nos sentimos, não é? Somos e seremos aquilo de que nos lembramos. 

O cinema mostra muitas vezes a irrupção do passado a partir do traumático, mas o que acontece quando o que regressa tem o brilho do que é amado? “Vidas Passadas” utiliza o conceito budista coreano de In-Yun, que simboliza a ligação entre duas pessoas que caminharam juntas durante 8000 vidas.

Este filme conta a história de Na Young e Hae Sung, dois pré-adolescentes coreanos com cerca de doze anos que são amigos, gostam um do outro e apaixonam-se. Na primeira vez que os vemos, caminham juntos: a rapariga chora porque as suas notas ficaram em segundo lugar, atrás de Hae Sung, que teve a melhor nota da turma. Enquanto caminham, ele tenta animá-la e consegue: até ao final do filme, nunca mais veremos Na Young chorar, apesar de ela dizer que tem sido uma chorona. No entanto, nem sequer o fará quando se muda para o Canadá, nem na despedida do seu amor/amigo, da Coreia ou do seu próprio nome: agora, no Ocidente, será Nora.

Passaram doze anos desde essa imigração. Nessa altura, Nora (Greta Lee) é uma dramaturga em formação e vive em Nova Iorque. Nunca mais viu Hae Sung (Teo Yoo), e até tem dificuldade em lembrar-se do seu nome. Mas os seus caminhos cruzam-se no Facebook e voltam a encontrar-se através do Skype. Naquela chamada, ambos estão nervosos, mas logo tudo se torna natural – como o nativo, a língua materna, é naturalmente perene -, tanto que, numa sinceridade absoluta, Hae Sung diz a Nora que, embora pareça ridículo e lhe custe dizer, tem saudades dela. Ali, perante a bravura da sua personagem, está Celine Song – a estreante realizadora – que já fez uma bela declaração de princípios: sobrevivemos ao nosso passado, sobretudo quando se é imigrante. E, no processo, ela deixa um esboço do retrato que “Vidas Passadas” fará da imensurável profundidade emocional que existe na ligação entre dois estranhos apaixonados.

Depois do referido encontro virtual, Nora e Hae Sung iniciam uma espécie de relação alimentada por milhares de videochamadas onde rapidamente surge uma cumplicidade semelhante à que tinham na infância e um gozo que é apenas uma consequência desse tempo partilhado. Mas a distância incomoda e, ao fim de alguns meses, Nora pede ao rapaz que deixe de falar com ela. E, mais doze anos se passam. Nunca mais se falam. Nora está agora casada com Arthur (John Magaro), um escritor americano. Hae Sung acabou de romper com a namorada e decide ir de férias para Nova Iorque… Depois de 24 anos, encontram-se finalmente.

Essa cena, o reencontro, é uma das melhores do filme. Hae Sung está num parque, nervoso. Olha para o seu reflexo na água de uma fonte e penteia o cabelo. A manipulação do corpo por Yoo é perfeita: o rapaz espera com uma postura quase infantil, com uma bela rigidez corporal, e com a mochila aos ombros, o cabelo penteado para trás e as mãos a agarrar cada uma das pegas da mochila, vemos no seu comportamento aquela criança de então, transformada em gigante. Depois chega Nora, que o chama de longe. Estava a caminhar mas, ao vê-lo, pára. Olha-o de longe, como quem olha para o passado.

Continua a andar e chega a Hae Sung, mas pára. É evidente que o espaço interpessoal na Coreia é diferente do dos EUA (e há muito jogo com o choque cultural neste filme), mas é igualmente impressionante ver Nora tão “distante” de Hae Sung. Eles olham um para o outro como se quisessem confirmar que ainda existem. Estão mudos. E assim passam segundos que parecem horas. Depois, ela abraça-o. Ele está quase estático, deixa-se abraçar. Nora distancia-se um pouco e olha para ele. E ele, para continuar com a sua atitude infantil, pergunta-lhe: “O que é que eu faço?” Nora abraça-o de novo. Desta vez, ele abraça-a de volta. Durante o resto do filme, não voltam a tocar-se, exceto com o olhar.

Em “Vidas Passadas”, o olhar é uma ferramenta crucial, um vetor definitivo para as personagens, e é uma arma que Yoo e Lee manejam de forma sublime. Aqui o olhar, e sobretudo o olhar sustentado nos olhos do outro, é um eixo através do qual se contacta com o tempo partilhado entre os protagonistas: o tempo que não passa. Há algo neste olhar fixo que explica a decisão de ambos de não fazerem mais do que olhar um para o outro. A ideia de observar sem romper, de apreciar o facto de o outro existir, mas sempre com um certo receio de que ele desapareça. Também no olhar de Arthur, o marido de Nora, que escolhe observar e saber, abraçar e suportar, a forma como Nora dialoga com o seu passado e a sua terra natal. É esse medo que torna esta história profunda e sublime. 

Talvez outros realizadores se tivessem apaixonado pelo menos por um beijo entre estas duas personagens, que seguem caminhos separados há 24 anos… Mas esta é uma história diferente. “Vidas Passadas” não narra um relato pendente, mas uma relação penetrante e íntima com as nossas próprias memórias; com essas dimensões do tempo comum, contável em dias e anos e esse tempo imanente que nos constitui “para dentro” de nós próprios. Quem não é desafiado pelo amor passado e inacabado? Quem não se comove com o facto de alguém quase desconhecido poder habitar um espaço tão profundamente nosso?

“Há anos que digo que nunca choro durante os momentos tristes dos filmes, apenas durante os momentos que giram em torno da bondade”. Roger Ebert (1) escreveu esta frase maravilhosa em 2009. E o facto é que Celine Song evita conscientemente todos os lugares-comuns dos triângulos amorosos e das paixões reencontradas, transformando-os num afeto absoluto quase tangível. “Vidas Passadas” consegue fazer-nos amar cada vértice deste triângulo.

Há algo de Linklater e algo de Wong Kar Wai no tom do filme. Todos eles ressoam em momentos diferentes, que têm mil intenções que convergem no fato de estes dois amantes… nunca o serem. E isso é perfeito. É com esta intencionalidade que a realizadora gere o olhar dos – e entre – os protagonistas tanto quanto gere o nosso. Talvez por isso, no primeiro passeio que Nora e Hae Sung partilham como adultos, só os vemos em grande plano. E, apesar de ouvirmos a sua conversa, eles são mostrados como pequenas partes de uma paisagem na qual foram incorporados. Esta distância manifesta-se não só na imagem, mas também no som e na montagem: as elipses do tempo são apresentadas de forma tão abrupta que chegam a ser perturbadoras. Mas nesta forma brusca de (não) mostrar a passagem do tempo há algo que re-significa o presente, que o torna impertinente, ininterrupto. E, no entanto, quando as personagens ecoam isto e Arthur o verbaliza, dizendo algo semelhante a Nora (diz-lhe que, em qualquer história como esta, o marido representaria um vilão branco e judeu que viria estragar um amor verdadeiro), ela desata a rir. Porque aqui o território de disputa não é Nora, e os dois homens também não estão a disputar nada. 

“Vidas Passadas” coloca uma luta muito mais dura e complexa: aquela entre quem somos e quem fomos, mas sobretudo aquela entre duas temporalidades que tentam apropriar-se de (e talvez criar) uma nova e entre duas culturas e tradições diferentes. Aqui, o passado e o presente estão em constante duelo para forjar um novo espaço que talvez seja o futuro (e apenas porque ele sempre existe potencialmente). No entanto, desta batalha ridícula e impossível, nunca é decretado um vencedor. Depois, o filme despede-se mostrando-nos Nora a chorar. Porque qualquer escolha implica uma renúncia, e os psicanalistas sabem o esforço psíquico que é a coragem de abrir a nossa caixinha de idealizações intocáveis, de as tornar maleáveis, amáveis, e de as deixar cair.

AUTORA
Silvia R. Acosta
Psicanalista argentina, residente em Portugal desde 2020 \ Membro associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da Associación Psicoanalítica de Córdoba (APC) \ Membro da Comissão de Estudos sobre Diversidade Sexual e Género da International Psychoanalytical Association (IPA) \ Trabalha sobre processos migratórios, luto e transições com adolescentes e famílias em diferentes partes do mundo e diferentes línguas.
E-mail — centrodrac@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Ebert, R. (2009) https://www.rogerebert.com/roger-ebert/i-feel-good-i-knew-that-i-would.
2.Le Poulichet, S. (1996). O tempo na Psicanálise. Jorge Zahar.

TRAILER

Ficha Técnica
Título original — Past Lives
Título português — Vidas Passadas
Ano — 2023
Duração — 105 min
País — Estados Unidos
Direção — Celine Song
Argumento — Celine Song
Produção — Pamela Koffler – Christine Vachon
Música — Christopher Bear – Daniel Rossen
Fotografía — Shabier Kirchner
Elenco — Teo Yoo como Hae Sung – Seung Min Yim como Hae Sung joven – Greta Lee como Nora – Seung Ah Moon como Nora jovem – John Magaro como Arthur – Ji Hye Yoon como mãe de Nora – Choi Won-young como pai de Nora – Min Young Ahn como mãe de Hae Sung – Jonica T. Gibbs como Janice – Emily Cass McDonnell como Rachel – Federico Rodríguez como Robert – Kristen Sieh como Heather – Conrad Schott como Peter

SINOPSE
Nora e Hae Sung, dois amigos de infância com uma forte ligação, foram separados quando a família de Nora, na altura com apenas 12 anos, emigrou da Coreia do Sul para o Canadá. Muitos anos mais tarde, quando Nora está a estudar em Nova Iorque, os dois voltam a encontrar-se online. Protagonizada por Greta Lee, Teo Yoo e John Magaro, a história segue uma viagem de 24 anos de encontros e mal-entendidos, contemplando a natureza da sua relação à medida que se afastam e vivem vidas diferentes, acabando por passar uma semana juntos que os confronta com o amor, o destino e as escolhas que compõem uma vida. O relato é semi-autobiográfico e inspirado em acontecimentos reais da vida de Song.