DAS (IM)POSSIBILIDADES DE EXISTIR — Private Desert (2021)

— JOSÉ ALBERTO ROZA —

O mundo em que vivemos nos coloca na busca pelo amor im-possível. O que antes eram os encontros presenciais deu espaço às fantasias de um amor que se inicia nas redes sociais ou nos aplicativos de namoro.

Daniel, em seu deserto particular, encontrará Sara, uma garota que vive a cerca de 3.000 km de distância. Ele, que se divide entre Moreira, seu nome-policial, e Daniel, seu nome-homem, vive no sul do país. Ela é uma garota do nordeste. Estão unidos por um aplicativo de mensagens, uma escolha minuciosa sobre o que poderá ser contado, já que só podem se mostrar um para o outro depois que há uma edição prévia. O que sabem um do outro? E mais, o que não se pode saber um do outro? Essas são questões que me parecem nortear a narrativa do diretor Aly Muritiba.

Logo na primeira cena, a cidade está vazia, faz frio e Daniel corre na rua, sem que saibamos se o dia vai amanhecer ou se já é noite. Nós nos deparamos com a corrida e escutamos o pensamento dele no passado, em um recado para a amada: “Pensei em você hoje enquanto eu corria. Não sei explicar direito, mas eu sempre penso em você enquanto eu tô correndo.” E perde o fôlego.

Em Deserto Particular temos um filme sobre reivindicação de nomes e de um lugar possível para amarmos no mundo. A masculinidade de Daniel entra em conflito quando uma cena de violência cometida por ele na escola de policiais, e também muito comum no mundo dos homens desde a infância, ultrapassa o limite quando um recruta é espancado e está em uma cama de hospital. Enquanto a punição não chega ele é afastado do cargo e encaminhado para sessões com um psiquiatra. Ele parte antes rumo ao norte, ou melhor para o nordeste.

Ao pensarmos sobre a construção social do masculino a partir do machismo e do patriarcado, o lugar do “homem de verdade” é o que impõe seu poder a si mesmo e aos outros, sacrificando sua própria afetividade. A masculinidade falocêntrica ganha contornos específicos com a formação violenta do que seja um policial. É esse que enfrenta perigos, tem habilidades bélicas e porte físico de resistência e imponência, atributos de uma masculinidade que percebe em qualquer fragilidade uma forma de subjugação. E quando se trata de um encontro amoroso, seria Sara alguém a ser subjugada, espancada ou amada?

Outro ponto pode ser discutido na figura do pai de Moreira, sargento aposentado que enfrenta um processo de demência. Fardado, ele manuseia as armas em casa, mas, quando nu, ele precisa do filho para os cuidados básicos. A potência das armas em punho dá espaço para a impotência, onde no banho perde autonomia. A mãe de Daniel morreu há anos. Seria ela a detentora da palavra e do afeto familiar e em sua ausência. Daniel, em uma conversa com Sara, atribui sua perda de fé no mundo. Nesse sentido, há a recusa do afeto em um modelo que torna os homens incapazes da compreensão de uma igualdade entre homens e mulheres, mas também de confiar no outro como confidente de suas dores e amores.

A primeira figura feminina surge no filme a partir da irmã de Daniel, que saiu de casa para viver sua vida longe daqueles homens e de tantos outros que reproduzem o machismo em um pacto cisheteronormativo. É interessante perceber como sua relação familiar se estabelece, na estranheza/desconforto nos dias em que tem o cuidado ao pai como função. Ela tenta romper com um mundo de silêncios sobre a sexualidade e o afeto, tentando contar, sem êxito, sobre suas relações pessoais. Podemos falar sobre nossos amores em uma família onde o silêncio é o contrato?

Ainda vivendo em seu deserto, Moreira pega a estrada! Sara deixou de responder às mensagens no aplicativo e a paixão por ela, somada à fuga de si mesmo, o fez viajar. A caminhonete da família toma a estrada e, aos poucos, Moreira fica no sul e Daniel vai para o que será seu norte, as cidades de Sobradinho e Juazeiro, no nordeste do país. A fotografia do filme sai dos tons azulados e ganha os tons terrosos. Ainda é deserto mas, dessa vez, começamos a encontrar Sara, que, como ele, vive também em seu deserto particular.

Como descobrir mais do que o que foi escolhido para ser mostrado? O filme discute como o mundo nos molda e as normas sociais nos aprisionam. É fundamental que nos atentemos a como os personagens respondem a isso, seja saindo daquele lugar/âncora/porto onde vivem, alterando o fluxo do rio em que navegam ou mesmo quebrando o gesso que os encapsula. Para Fábio Herrmann (1) a identidade se apresenta como a representação que o sujeito faz de si mesmo perfeitamente solidária à realidade: sua matéria de representação é a própria realidade.

Podemos pensar a psique sob a perspectiva de que ela “não é de nossa fabricação pessoal, cria-se no real, desenvolve suas propriedades historicamente e é infundida no indivíduo por seu tempo e sua cultura, moldando-o ao estilo presente de pensar.” (1, p.158). Nesse sentido, Daniel está em contato consigo a partir do mundo em que vive e de sua masculinidade, com sua construção de identidade.

A viagem dura dias e acompanhamos tudo até quando Daniel finalmente chega para sua nova busca: Sara. As perguntas aos moradores da pequena cidade, cartazes impressos e colados nas paredes/postes, buscas pela amada que nos fazem pensar se Sara é uma fantasia dos aplicativos e das redes sociais. Como falar sobre os medos e as normas que impossibilitam os encontros? Sara sabia da violência de Daniel ao corpo frágil do recruta. Seria o medo da violência? Pode o policial amar alguém como Sara?

A trilha sonora se faz fundamental na construção ficcional, sendo apresentada ao espectador ao longo do filme, seja nos carros ou nos bares onde os amantes se encontram, ou mesmo nos silêncios-barulhos que mostram-camuflam os personagens. Com escolhas musicais assertivas, as músicas se tornam descrições dos sentimentos presentes em cena como: Together, we can take it to the end of the line / Your love is like a shadow on me all of the time / I don’t know what to do, and I’m always in the dark. (3)

E quem pode ser Sara? Ela é uma jovem que ainda não pode existir. Ela é e não é! Sara se esconde na proteção de um armário da sexualidade, mas que a aprisiona, proíbe ela de qualquer existência fora da norma. Seria tolice dizer que o espalhamento de cartazes não fez parte do encontro porque foi por meio desses que Sara se viu, que pode encontrar a si mesma em um dilema de desejar aparecer ou precisar se proteger. Foi pelo amigo gay que Sara pode, mesmo com medo, se deixar encontrar por Daniel. É esse amigo que a acolhe em sua existência, tanto a possível quanto a que poderia vir. Ele é a rede protetora ou o ar que a faz respirar dentro de seu armário.

Para Sedwick, a imagem do assumir-se confronta regularmente a imagem do armário, e sua posição pública sem ambivalência pode ser contraposta como uma certeza epistemológica salvadora contra a privacidade equívoca oferecida pelo armário (2, p.27). A sexualidade monitorada nos corpos desviantes é uma constante e com Sara não é diferente. Quem é Sara, afinal? Ela é Sara mas também é Robson, assim como Daniel e Moreira coabitam no mesmo corpo. Em uma cena olhando o rio, Sara conta a Daniel que ela é “um monte de água prestes a arrebentar e correr solta por aí”.

Mas para falarmos sobre Saras é fundamental compreender a sociedade cisheteronormativa e as proibições para corpos que ousam existir fora das normas sociais vigentes. Ainda adolescente Sara é expulsa de casa pelo pai e depois acolhida pela avó. O papel da avó é de acolhimento mas também de molde/norma. Isso se faz presente em uma conversa dela com o pai: “tua avó vai te consertar!”. Ao garoto que não pode ainda ser ela mesma, resta o emprego de carrega-dor no mercado local. As caixas de legumes são levadas de um lado a outro. Os caminhões vistos de cima são monitorados por ela. Se ela decidisse entrar em um deles, poderia ir para longe, seja lá onde esse longe a levasse.

Sara é descoberta após o beijo feito às pressas, com medo de que a edição se escapasse ao amante e a si mesma. O desaparecimento dela no bar seria inevitável, esse que só existe do outro lado do rio, em uma separação geográfica mas também simbólica. Esse é o bar/boate onde pessoas LGBTI+ podem existir. O vestido, presente do amante, é usado somente nesta noite. Depois é solicitado por Daniel, entregue/usado por outra mulher, essa outra cisgênera. Entre o uso e a devolução do presente vem a pergunta da avó ao questionar Sara sobre o vestido e a vizinhança. Pode uma mulher — que ainda não possa existir — usar um vestido em público? Daniel a descobriu pelo documento de identidade esquecido no carro; o nome não era Sara.

A existência de Sara está posta em cheque! A figura do pastor da igreja local nos conta o quanto a sexualidade dela deveria ser punida, assim como a do pastor também o foi no passado. Sara sabia que não poderia existir mais naquela cidade. O armário — mesmo claustrofóbico — foi derrubado e a proteção do silêncio daria lugar a uma nova expulsão, dessa vez não só de uma casa mas da cidade toda. A rodoviária é o palco da despedida quando a passagem para o Rio de Janeiro é comprada.

O tempo de espera tem seus reencontros. Daniel pode amar Sara? Quanto da nossa cisnormatividade está presente nas escolhas afetivas? O filme investiga um mundo de masculinidades fragilizadas, mas ao mesmo tempo pode romper com o gesso e algumas amarras normativas. Daniel decide romper com o gesso que envolvia seu braço, mas o faz após a presença-distante do pai sargento. Quanta dor cabe no encontro amoroso proibido pelas normas sociais vigentes? O sexo, o amor, os sorrisos, o colo, o abraço demorado… o que pode o amor? Daniel pensa em virar pescador e ficar na cidade onde pode se encontrar. Sara decide ir ao Rio… E para onde vamos nós após assistir ao filme? Seremos capazes de pensarmos em nossos próprios amores?

AUTOR
José Alberto Roza
Psicólogo\ Psicanalista \ Supervisor Clínico-Institucional \ Doutor em Psicologia – Universidade de São Paulo (USP) \ Professor Universitário e pesquisador em Saúde Mental e Contemporaneidade, Diversidade e Inclusão – gênero, raça e sexualidade.
E-mail — contato@joseroza.com.br

REFERÊNCIAS
1.Herrmann, F. (2001). Introdução a Teoria dos Campos (2ªed.). Casa do Psicólogo.
2.Sedwick, E. (2007). A epistemologia do armário. Cadernos Pagu, 28, 19-54.
3.Tyler. (1983). Total eclipse of the heart [música] On Faster Than the Speed of the Night. Columbia Record.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Deserto Particular
Título inglês — Private Desert
Ano — 2021
Duração — 120 min
País — Brasil
Direção — Aly Muritiba
Produção — Grafo, Muritiba, Fado Filmes
Fotografia — Luis Armando Arteaga
Música — Marcos Mana
Figurino — Isabella Brasileiro
Elenco — ​​Antonio Saboia – Pedro Fasanaro – Thomás Aquino – Cynthia Senek – Laila Garin

SINOPSE
Daniel (Antonio Saboia) é policial, seguindo a carreira militar como seu pai. Após cometer um grave ato de violência contra um recruta da corporação, ele tem sua carreira posta em risco. Neste tempo, Daniel inicia um relacionamento virtual com a misteriosa Sara, que ao descobrir o crime do amante, começa a não responder-lhe nas redes sociais. Sem enxergar um horizonte no sul, e apaixonado por Sara, ele atravessa o Brasil em uma viagem de carro para o sertão da Bahia onde Sara vive. Este encontro mudará a relação dos dois com o mundo em que vivem, alterando seus caminhos e criando possibilidades novas de existência.