A TERNURA DO GROTESCO — Paula Rego: Secrets & Stories (2017)
— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —
A delicadeza e a frontalidade do diálogo instalado entre Nick — cineasta e filho — e Paula — pintora e mãe — não cessa de maravilhar neste filme/documentário.
Nick pediu inúmeras vezes à mãe, em vão, para fazer um filme sobre ela… Ela uma mulher portuguesa a fazer arte no mundo dos homens e no estrangeiro (Londres). Ela que ali conheceu o seu pai (Victor Willing), também pintor, a pessoa mais importante na vida de Paula Rego (PR), cujo profundo amor a par de inquietantes segredos Paula acaba por revelar ao filho. Ela, de quem Nick é o único filho homem e o mais novo de uma fratria de três, junto a Caroline (Cas) e Victoria (Vicky), que juntos lhe deram cinco netas.
Este documentário tem origem numa história pitoresca. PR pediu a Nick que viesse a Portugal, à casa dos avós, buscar um serviço de porcelana “Companhia das Índias”. Nick não encontrou o serviço, mas sim uma caixa com filmes 8mm, realizados pelo avô de 1920 a 1966. E essa “caixa de Pandora” permitiu que todos nos tornássemos herdeiros deste documentário artístico-biográfico.
Em 2014, Nick, passou dois anos ao lado de Paula, então com 80 anos, a ouvir as suas histórias: “Eram histórias que eu nunca tinha ouvido, que explicam muito da minha vida e da dela, de uma maneira que me fez entender várias das suas obras.” E ressalta: “O meu filme não é sobre a artista, é sobre a pessoa. Ela sempre foi artista em primeiro lugar, pessoa em segundo e mãe em terceiro. Eu queria descobrir a pessoa por trás da pintora.” Conta que a mãe “foi sempre um grande mistério” e quando ela abriu uma porta para seu mundo, durante aquela conversa que resultou no filme, ele aproveitou para fazer todas as perguntas que guardava.(1)
Sabemos que as perguntas, mais do que elucidar, alargam o mistério.
A psicanálise de teor reconstrutivo-histórico numa dimensão mais intrasubjetiva abriu-se na contemporaneidade ao campo, ao transicional-potencial e aos fenómenos da terceiridade apontando a inevitabilidade do intersubjetivo. Soma-se a complexidade da transubjetividade gerada, muitas vezes, nas e pelas linhas fronteiriças da transgeracionalidade, menos ou mais benigna.
Mãe-filho e pintora-cineasta, entretecem uma narrativa estética na confluência de lembrar, revelar e narrar a turbulência e a autenticidade da ‘vida-a-vida’ e da criação artística. Bússolas das coordenadas espaço-tempo, as estórias (stories) nas suas dimensões constituintes, biográficas e intrasubjetivas, mesclam-se com a história (history) em termos do contexto socio-cultural, intersubjetivo e transcultural.
Maria Paula Figueiroa Rego (1935-2022) nasceu no Portugal salazarista e “poucochinho” para uma mulher, como lhe dizia o pai. Avant la lettre, tendo morado em Londres enquanto engenheiro da Marconi e anglófono, inscreve a filha na St. Julian’s School, em Carcavelos, encorajando-a mais tarde a partir para estudar na Slade School of Arts. Ali se abriram novos horizontes para Paula, que desde sempre desenhou e pintou, impulsionada pela mãe a quem reconhece qualidades artísticas.
É em Londres que, junto de Francis Bacon e Lucian Freud, assim como de Michael Andrews, Frank Auerbach e Leon Kossoff, PR passa a pertencer àquela que ficou conhecida como The London School.
É ali que conhece o pintor Victor Willing (1928-1988), sete anos mais velho, casado, considerado por muitos como o melhor pintor da sua geração. Da intensa e atribulada relação entre os dois, depois da alguns abortos, Paula resolve ter a sua primeira filha, voltando para Portugal e passando a residir na Ericeira, na casa dos avós. Vic acaba por se juntar a ela, casam em 1959 e têm mais dois filhos. Em 1966 Vic desenvolve esclerose múltipla. Após a morte do sogro, tenta gerir a empresa familiar, mas a falência no início dos anos 70, acaba por obrigar à venda da Quinta e, em 1976, ao estabelecimento da família em Londres.
É lá também que encontra o seu ‘alter-ego’ — Lila — uma enfermeira vinda de Portugal para cuidar de Vic que se torna, posteriormente, companhia e modelo inúmeras vezes retratada. E apesar do luto doloroso, é também após a morte de Vic que Paula consegue lançar consistentemente a sua arte, expondo publicamente e adquirindo reconhecimento.
O título do documentário — “histórias e segredos” — condensa a mestria genial de Paula Rego (PR) ao desenhar/pintar histórias que revelam/escondem segredos. E corrobora o saber psicanalítico — qualquer história é ficção e todas contêm segredos.
Nick soube permanecer do lado das perguntas e da indagação, não tendo sido, em nenhum momento, capturado pela armadilha de buscar ou construir explicações. Conta aliás que, na montagem, o mais prazeroso foi cortar a voz da mãe para dar voz a uma história mais fluente e livre.
Ao longo de todo o documentário, Nick combina um grande arquivo de filmes caseiros e fotografias de família com entrevistas e imagens que percorrem 60 anos da vida de PR a trabalhar no estúdio. Longe de qualquer tonalidade exibicionista/voyeurista, os segredos e a intimidade da família apresentam-se como um jogo de espelhos refletindo as múltiplas perspectivas do universo cativante e misterioso da pintora.
Entre ritmos e arritmias, o seu estúdio-pele, os “bonecos” que constrói, veste e com os quais se sente acompanhada, e as suas telas, evocam as dimensões proto-mental, sensorial e pré-verbal ora harmonizando ora enfatizando a ambivalência do paradoxo que é a própria vida. PR, tímida e reservada na vida, solta visceralmente na obra, a sua hybris com impetuosidade.
Apesar de dizer que se sente a morar num “quarto escuro” desde a idade de três anos, ou provavelmente por isso mesmo, PR tornou-se uma mulher desassombrada no enfrentamento da esfinge. Não está preocupada em decifrar enigmas. Pelo contrário, pinta convocando indiferenciadamente o originário, o arcaico, o cotidiano e o sagrado, como se dissesse: ‘devora-me e decifra-te’!
As suas obras, marcadas pelo cruzamento com a literatura, o cinema e o teatro, pelas memórias da infância e pelas criaturas fantásticas do universo mítico e onírico, são o disparador para as plurais expressões do feminino costuradas à sua própria história — filha, neta, mulher, amante, mãe, artista, imigrante, e ainda “dame“, título com que foi anacronicamente agraciada, sendo ela considerada uma feminista-ativista.
Parece continuar a reverberar transversalmente a interrogação de Freud sobre o multifacetado universo feminino — “afinal o que querem as mulheres?” E PR parece criar uma “pele artístico-política”, dando forma à multiplicidade polissêmica do feminino: bissexualidade-‘infantil’, erótico-materno, ambiguidade-ambivalência, ativo-passivo, masoquismo-erotismo, submissão-libertação, privado-público, individual-social.
Tal como o Anjo — da guarda e/ou castigador — PR contrapõe, sem pudor, o que define como “a ternura do grotesco”. A sua obra, confronta-nos com a paradoxalidade da violência e da doçura, da crueza e do humor, contidos no “perverso-polimorfo” da pulsão, fazendo ecoar em nós o ‘inquietante familiar’: o espanto e o encanto.
Haveria talvez um unthought known, um proto-feminino, um feminino originário e arcaico, que pudesse ser um des/re-conhecimento inconsciente de um espaço e de uma vivência comum? Todos, mulheres e homens, somos gerados num útero e nascemos de um corpo feminino: “Em nossos primórdios, dentro do corpo de nossas mães, depois imersos em suas texturas psíquicas e somáticas, nós somos seres encobertos.” (1)
Os quadros-histórias de PR re-atualizariam o conflito estético, ao tocarem o originário comum a todos? Ao trazerem à ribalta a ‘negritude’ do feminino e as complexas questões de género? Ao evocarem repulsa e atração? Talvez, como diz Nolasco (2), “ao exibir o incesto implícito, o abjeto, o aborto, o desejo sexual das crianças e dos idosos, as ilusões infantis nos adultos, tornando visível o lado carnal dos anjos e a sua sombra, PR entra numa zona considerada de risco pela sociedade, mostrando aquilo que é socialmente intolerável.”
Talvez o feminino seja “…influenciado pelo “odioso assédio dos contrários” de Milton, suportando as tensões emocionais do “casamento dos contrários” (…) e tolerando a “apavorante simetria” entre terror e beleza…”(3) Para Paula (4),
“A beleza e o grotesco, vêm do amor. O amor casa essas coisas todas.”
Kristeva (5), junto com o abjeto, mas para além dele e da separação, traz-nos a ternura como afeto básico da confiança e da “religância”. Ora “confiança, vem do latim confidentiae, confidere, e significa acreditar plenamente, com firmeza. Con-fiar, ‘fiar com’, seria tecer internamente na companhia de alguém o autêntico self? A con-fiança torna os pais fiadores dos filhos, pela rêverie e pelo holding…” (6) E torna também os casais fiadores um do outro e do amor.
Diz Agustina Bessa-Luís (7): “Durante trinta e três anos teve um homem à sua beira, na sua vida, na sua arte. É uma fidelidade que se parece com um ato de fé…”. E parece espelhar o conselho que PR daria a um jovem pintor: “encontra alguém em quem confias e se puderes casar, melhor.”(8)
Bioniano ato de fé, confiança no sentido de religância, é o que emana da relação de PR com a sua obra e com Vic, expressa na carta de despedida que este lhe deixou antes de morrer e trazida por ela sempre junto a si.
PR conseguiu manter-se em capacidade negativa suportando a dor do conflito e em contato profundo com a misteriosa anterioridade, o abjeto, o proto, o originário que a todos desassossega.
E Nick conseguiu captar com a sua lente sensível a boa cena primitiva, raiz da verdadeira criatividade, fertilmente transformada na vida e na obra de PR.
Bem-hajam!
AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Analista de Crianças e Adolescentes \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — mail@anamelicias.com
REFERÊNCIAS
1.Bollas, C. (2010). Criatividade e psicanálise. Jornal de Psicanálise – São Paulo, v.43 (78): 193-209, 2010. p. 205.
2.Nolasco, A. (2004). A ironia e o grotesco na obra de Paula Rego. In Rosengarten, R. (Ed.) Compreender Paula Rego: 25 perspectivas. Jornal Público e Fundação de Serralves, p. 148.
3.Junqueira Filho, L. C. U. (2010). Resenha sobre “O desenvolvimento estético: o espírito poético da psicanálise. Ensaios sobre Bion, Meltzer e Keats” de Meg Harris Williams. Karnac, 2010, 200p. In: Revista Brasileira de Psicanálise, Volume 44, n. 2, 177-184 · 2010.
4.Ribeiro, A. M. & Rego, P. (2016). Paula Rego por Paula Rego. Círculo de Leitores. p. 99.
5.Kristeva, J. (2019). Prelúdio de uma ética do feminino. Abertura do 51o Congresso da International Psychoanalytical Association. Londres, 2019. http://www.fepal.org/preludio-de-uma-etica-do-feminino-por-julia-kristeva- apresentado-na-abertura-do-congresso-da-ipa/
6.Melícias, A. B. (2015). Into the Wild: o labirinto da adolescência. Revista Portuguesa de Psicanálise 2015, 35[2]:60-67. p. 66.
7.Bessa-Luís, A. & Rego, P. (2008). As Meninas. 2a ed. Guerra e Paz.
8.Willing, N. (2017) – Paula Rego: Histórias e Segredos, 2017, documentário produzido by Kismet Films para a BBC, DVD, 1h 32′. Título Original: Paula Rego, Secrets & Stories.
FICHA TÉCNICA
Título original — Paula Rego: Secrets & Stories
Título português — Paula Rego: Histórias & Segredos
Ano — 2017
País — Reino Unido
Duração — 92 min
Realização — Nick Willing
Argumento — Documentário
Produção — Kismet Films para a BBC
Produção Executiva — Liz Hartford
Produção Executiva para a BBC — Mark Bell & Kate Townsend
Produção — Michele Camarda
Música — Madison Willing
Edição — Nick Willing
Elenco — Fiona Bradley – Luís Amorim de Sousa – John Erle-Drax – John McEwan – Nick Willing – Paula Rego – Ron Mueck
SINOPSE
Conhecida por ser muito ciosa da sua privacidade, Paula Rego revela-se pela primeira vez neste filme/documentário, surpreendendo o seu filho, o cineasta Nick Willing, com histórias e segredos da sua vida e do seu percurso artístico.
Em simultâneo à estreia do filme, Paula Rego inaugura a exposição “Histórias & Segredos” na Casa das Histórias, em Cascais, com 80 obras suas e do marido, Victor Willing. Na mesma altura, a artista recebe Carta Branca da Cinemateca Portuguesa para programar um ciclo de dez filmes. (https://mag.sapo.pt/filmes/paula-rego-historias-segredos)