CASCATA DE SENSORIALIDADE — Portrait of a Lady on Fire (2019)
— MAGDA GUIMARÃES KHOURI —
Marianne (Noémie Merlant) é a jovem pintora que chega a uma ilha afastada da Bretanha para fazer o retrato de Héloise (Adèle Haenel), sem que ela saiba.
Héloise é filha da aristocracia franco italiana e foi prometida a um homem milanês. A condessa (Valeria Golino) contrata Marianne com o objetivo de enviar o seu trabalho como forma de apresentar a filha ao futuro marido.
Ao narrar de maneira gradual e delicada, a diretora Céline Sciamma mostra o amor de duas mulheres na França do século XVIII (1700). É nesse contexto que desenvolve uma história que se dá em muitas camadas, convidando o espectador a se aproximar, sem pressa, dos sentidos que emergem de forma intensa em cada cena assistida.
Poderíamos começar perguntando o que a psicanálise teria a dizer sobre o filme? Em vez disso, a proposta que se afinaria mais à escuta clínica seria investigar: o que a psicanálise pode aprender com esse filme?
Retrato: testemunho de uma subjetividade
Construído por sucessivas cenas inspiradas em várias referências de artes plásticas do século XVIII, o filme se traduz por pintura e poesia. Tal entrelaçamento com a arte se dá de forma vital, como ato constituinte de todo o enredo. O próprio trabalho de pintar de Marianne é introduzido praticamente como um personagem, nesse jogo de olhares estabelecido entre as duas mulheres e o retrato a ser desenhado.
O retrato como elemento central do filme, nos leva a explorar seu significado na história. Para tal, o artista plástico brasileiro Sergio Fingermann (1), recorre aos registros encontrados nas Cavernas de Gargas, do Paleolítico superior da Europa, localizada no comuna de Aventignan (Hautes-Pyrénées, França), de 27000 A.C.
Fingermann destaca as mãos em negativo, cujo método resumia-se em colocar as mãos nas paredes das cavernas e assoprar pigmentos em pó sobre elas, a fim de obter a silhueta das mãos. Testemunho de uma subjetividade, ali nasce o retrato, pois nesses desenhos há uma individualidade registrada.
O artista refere-se ao retrato como uma construção de um “monumento à subjetividade”. Como toda arte, ultrapassa a aparência, é sempre um artifício para colocar em contato o que o real não oferece. Produz encantamento, alimenta o desejo a partir de “algo que reside na profundidade da imagem, que nos é invisível.”(3).
Por meio da experiência da pintura e do olhar, há o tempo do nascimento das subjetividades e a ascensão do feminino das personagens. O clima intimista do filme, o seu ritmo lento, a beleza das paisagens, as cores e sombras tendem a colocar o espectador num estado mais próximo ao da contemplação. E rostos e paisagens exigem contemplação. “É preciso ter tempo para ver os rostos e a paisagem. Para se evidenciarem a força e a atmosfera que deles emanam. O drama interior das pessoas, a serenidade, os lugares”. (3).
Manifesto no olhar
É em torno do olhar que grande parte do diálogo acontece entre as personagens.
Durante os vinte minutos iniciais do filme, a modelo que será retratada ainda é um mistério para a pintora. Na verdade, Héloise se recusa a posar para o retrato, já que a entrega do quadro selará um casamento indesejado. Marianne, disfarçada de dama de companhia durante o dia, terá que pintá-la em segredo, à noite, de memória.Noite que sabemos ser representante do tempo de sonhos, sombras e projeções. Por isso, as mulheres do casarão passam os dias a se olharem, a se espiarem.
Na praia, com o rosto coberto por véus para protegê-lo do vento, Héloise dispara até a beira do abismo onde a irmã havia sido encontrada: “Venho sonhando com isso há anos”. Marianne assustada lhe pergunta: “Morrer?”, e de forma surpreendente Héloise responde: “Correr”. Assim se apresentam os momentos iniciais em que o corpo está solto, e subitamente a paisagem inóspita torna-se acolhedora.
O ponto de virada vem na descoberta de que Marianne é uma pintora. Héloise pede para ver o quadro e não se vê na imagem que encontra ali. Após ser desafiada e contestada por sua modelo, Marianne desenvolve um olhar diferente, e aí se desfaz a musa silenciosa e nasce a cocriação das duas. Héloise passa a observar ser observada, o que desconcerta Marianne e a coloca para dentro da cena erótica. Quando a pintora percebe que está sendo contemplada, Héloise pergunta: Se você está olhando para mim, para quem eu estou olhando?
Objeto amoroso, depositário de uma subjetividade de quem vê.
O olhar se constitui no filme como ato onde se entrecruzam arte, amor, dor e desejo.
Fogo
Exceto nas tomadas diurnas externas, é possível ouvir ou ver uma chama em quase todas as cenas, ora sob a forma de faíscas, ora queimando na lareira. Tais imagens vão contando sobre o crescimento da paixão entre as duas personagens. Amor que é acompanhado por um grupo de mulheres, uma grande irmandade, que se reúne ao redor da fogueira e, como um transe, cantam uma música onde só se escutam as suas vozes e a força de suas palmas. O cântico ritmado que entoam nesse momento enuncia: “Não temos saída”.
Lá onde a pintora e a modelo estão encarando uma à outra, há fogo entre elas, e Héloise literalmente pegando fogo.
Nos diversos encontros femininos, o roteiro se reveste por uma marcante sororidade, sobretudo na relação com a jovem empregada da casa (Luana Bajrami), que é cativante em seu olhar e em sua sinceridade.
Nesse contexto de cumplicidade e desejo, Sciamma consegue apresentar a mulher encarnada como sujeito histórico, em contraponto a subjetividades apagadas, amores sufocados. O fato de dar lugar a mulheres se apropriando de seu desejo fica também ressaltado pela escolha do recorte temporal do século XVIII, época em que o mundo ainda apenas girava em torno da ótica masculina.
O que fica no ar, como uma sombra que percorre o enredo do começo ao fim, é o insuportável destino de ser prometida para alguém, desse modo sem saída, excluindo completamente o desejo de quem está em jogo. Um abismo que ronda as cenas, com uma melancolia atrelada à dor e ao sofrimento.
É desse lugar da insatisfação, que Sciamma cria a possibilidade dessas personagens se fabricarem a si mesmas, apesar das conjunturas, apesar das limitações.
Levando em consideração que o retrato é a eternização de uma imagem, a pintura de Héloise equivaleria à sua condição de existir. E no final deixa como registro o desejo, um existir pegando fogo, conforme foi o último trabalho de Marianne. Imagem que coloca o espectador como testemunha de mulheres reivindicando uma norma própria para sua sexualidade.
Feminino
Exala feminilidade em cada detalhe da delicada história de amor narrada. Mesmo sabendo que a relação seria interrompida, fica evidente a enorme liberdade que o sentimento entre as duas mulheres produziu. Nesse sentido, entre as várias interpretações que surgem no filme do mito de Orfeu e Eurídice, fica traduzido nas entrelinhas, o querer permanecer na memória com essa experiência amorosa, que foi tão constituinte das suas existências.
Tal universo feminino tratado no filme nos remete ao que ressalta a psicanalista Julia Kristeva sobre sua capacidade transformativa: “…o feminino trazido pela descoberta freudiana do inconsciente é um fator, se não o fator, dessa inquietante abertura, devido à sua própria transformabilidade: o femenino é transformativo.
Nem inata nem adquirida, mas incansavelmente conquistada desde as duas fases do Édipo inacabado, a vivacidade do feminino se diversifica ou sucumbe nas provas da impiedosa realidade sócio-histórica.”(2).
O roteiro ganha mais força com a catártica cena final, onde somos levados a passar com Héloise por todas os estados emocionais vividos por ela quando a orquestra toca ‘Verão”, um dos quatro concertos de “As Quatro Estações” do compositor italiano Antonio Vivaldi (1678-1741): são os rastros da memória que transbordam o limite da moldura dos quadros.
Cena esta que pode ser traduzida pela formulação de Kristeva: “…uma cascata de sensorialidades, traços mnésicos, fantasias e ideais copresentes leva o prazer de órgãos ao gozo feminino. “Toda a minha pele tem alma”, escreveu Colette (1907, p. 144). Acrescento: toda a minha carne tem alma.” (2).
O filme é uma ode à arte, ao feminino e ao amor.
AUTORA
Magda Guimarães Khouri
Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo \ Diretora de Comunidade e Cultura da FEPAL (2015-2016) \ Diretora de Atendimento à Comunidade da SBPSP (2017 – 2020) \ Organizadora com Bernardo Tanis do livro: A Psicanálise nas Tramas da Cidade, Ed. Casa do Psicólogo (2009).
E-mail — magdakhouri@uol.com.br
REFERÊNCIAS
1.Fingermann, Sergio (2021). Live sobre Arte em tempos de guerra: auto-retratos. O sentido dos retratos e auto-retratos. 19/01/2021.
Instagram: @sergiofingermann
2.Kristeva, Julia (2019). Prelúdio de uma ética do feminino in Revista brasileira de psicanálise, vol.53 no.3 São Paulo jul./set. 2019
3.Peixoto, Nelson Brissac (1992). Ver o invisível: a ética das imagens in Artepensamento, IMS.
FICHA TÉCNICA
Título original — Portrait de la Jeune Fille em Feu
Título inglês — Portrait of a Lady on Fire
Título português — Retrato da Rapariga em Chamas (PT) / Retrato de uma Jovem em Chamas (BR)
Ano — 2019
País — França
Duração — 121 min
Direção — Céline Sciamma
Produção — Véronique Cayla e Bénécdite Couvreur
Fotografia — Claire Mathon
Música — Jean-Baptiste de Laubier e Arthur Simonini
Figurino — Dorothé Guiraud
Edição — Julien Lacherey
Elenco — Noémie Merlant – Adèle Haenel – Luàna Bajrami – Valeria Golino
Sinopse
Na França do século XVIII, a mãe de Héloise (Adèle Haenel) contrata uma pintora para que ela faça um retrato da filha para ser enviada a um pretendente rico. Diante do casamento arranjado e não consentido, ao vislumbrar e temer a perda da infância e a obrigação de enfrentar o desconhecido, a jovem se nega a posar para o quadro. Então, Marianne (Noémie Merlant) se faz passar por dama de companhia de Héloise para que, à noite, possa pintar de memória sua modelo. Logo, o relacionamento entre as duas fica cada vez mais intenso.