SEGUINDO EM FRENTE — C’mon C’mon (2021)

— ALESSANDRA RICCIARDI GORDON —

Johnny estava imerso em seu projeto jornalístico ao ser atravessado pelo encontro com Jesse. Talvez estivesse em busca de uma aproximação à sua criança interior, mas acredito que este encontro desencadeou em ambos o desenvolvimento de capacidades emocionais e psíquicas.

Sugiro pensar esta experiência como uma analogia ao desenvolvimento da parentalidade, que é o trabalho psíquico desenvolvido quando se deseja um filho ou na relação com ele e supõe uma ampliação da vida emocional e da capacidade de continência. Neste processo, pais e mães passam por experiências semelhantes às vividas por Johnny ao atender o pedido da irmã.

A criança inventiva que cria viagens imaginárias confronta Johnny com um mundo complexo, para além da racionalidade adulta. Jesse não responde às perguntas da entrevista, não se encaixa nos papeis designados, quer ter um olhar próprio sobre o mundo. Johnny acompanha e acolhe suas próprias emoções diante deste inusitado convívio. A receptividade, é evocada e desenvolve-se nesta jornada de exploração das emoções e desenvolvimento da continência.

Jesse expressa sua curiosidade quanto aos enigmas dos relacionamentos: cenas e conflitos que povoavam a vida familiar são revividos. Muitas indagações são feitas por ele, o que propicia a Johnny revisitar e refletir sobre as rupturas da sua história.

Johnny se vê diante do mundo fantasmático infantil e a convivência entre fantasia e realidade lhe parece um paradoxo insustentável. Esta é a área da ilusão; Winnicott (3) propõe que o ambiente possa acolher este paradoxo e jamais fazer a pergunta que confronte fantasia e realidade. A aceitação do paradoxo serve ao desenvolvimento em curso e esta será uma das aquisições deste relacionamento. Inicialmente Johnny precisa escapar para a realidade, não consegue tolerar a fantasia, como se tal contato colocasse em cheque as frágeis bases de sua capacidade de discriminação.

Mas existem razões para esta brincadeira! Para Jesse, o padecimento psicótico de seu pai é por demais angustiante. Ele busca investigar no adulto a repercussão de suas emoções projetadas para que sejam objeto de continência e transformação. Esta capacidade está em construção na dupla, e é a este lindo processo que assistimos.

Assistimos também a Johnny tentando retomar seus projetos e este é também o conflito enfrentado pelos pais, ao tentar integrar a vida anterior às novas funções do universo parental. A formação de nova identidade está em curso. Bick (1) afirma que podemos comparar mães e pais de recém-nascidos a astronautas que subitamente perderam sua roupa no espaço sideral e precisam desenvolver uma nova vestimenta.

Imerso em seu projeto jornalístico, Johnny transforma o conflito em convite: venha e me ajude com as entrevistas e o som. Mal sabe ele que se envolve num processo de autoconhecimento que tem em Jesse o diretor. Neste processo, as palavras vêm depois para nomear e não antes, para estabelecer. O que vem antes é a experiência emocional, é preciso vivê-la em sua intensidade, acolhê-la, transformá-la e nomeá-la.

O ensaio lido sobre a maternidade descreve a tarefa quase impossível reservada às mães: conviver com emoções, contê-las, alfabetizá-las e transformar isto tudo em meio ao relacionamento com a criança. Trabalho tanto difícil, quanto pouco reconhecido e valorizado, puro trabalho mental de transformação que Johnny está desenvolvendo.

Andanças pelo país trazem turbulências causadas por lugares e pessoas desconhecidas, cidades movimentadas, barulhos. Há uma apoteose de excitação que demanda processamento afetivo, emocional: alguém que dê continência e limites.

Como afirma Bick (1), continência e limites são funções da pele psíquica – esta primeira estrutura que se forma no contato com a mãe e que propicia vivências de integração. O desenvolvimento da função interna de continência depende da introjeção de um objeto externo sentido como capaz de exercê-la. É a identificação com esta função do objeto que permitirá que se possam processar excitações e emoções, e quanto mais intensas, maior a demanda pela ampliação da capacidade de continência.

São exibidas situações em que a emoção é massiva, ambos ficam aterrorizados, perdem o controle: são momentos em que palavras não conseguem mediar a experiência, a turbulência emocional prevalece, surge o caos.

Jesse explora os limites, quer saber até onde pode ir. Johnny cede, mas fica claro que fazer o que quer não significa ser amado. É a concessão que denota impotência. Está em desenvolvimento a capacidade de ser firme, dizer o ‘não’ que propicia que o ‘sim’ também possa ser dito.

Aos poucos, o universo da fantasia com papeis desempenhados pela dupla como forma de expressão e elaboração do mundo interno, pode ser aceito. O conflito vai sendo encaminhado, a hostilidade posta em palavras e expressada num espaço criado e compartilhado.

Ao se consolidar um espaço de continência e limites, se constrói um espaço interno em que a fantasia pode ser encenada, o que possibilita discriminação, expressão verbal de um tema emergente, a emoção ligada a ele, mantendo separadas realidades interna e externa. Esta exploração segura possibilita um meio intermediário da experiência entre o dentro e o fora.

Sustentar este espaço intermediário levou a uma conversa que representa de fato o que é vivido, e este trabalho de continência e nomeação trouxe a representação plena de sentido, que difere da palavra vazia, despida de verdade ou prenhe de dissimulação: um blah, blah, blah

O universo da brincadeira preenche o espaço com o fluxo que vem da vida emocional e a participação do corpo, o faz de conta, a entonação que o acompanha e veicula o que está sendo sentido num plano mais integrado. A brincadeira põe em cena afetos que Jesse vive, é uma forma de tornar aceitável o inaceitável. Através dela vive-se ativamente o que foi experimentado de forma passiva, o que permite um ensaio no qual o afeto vai sendo expresso, a frustração aceita, a insatisfação elaborada.

Observamos que capacidades foram construídas, a roupa de astronauta perdida foi se refazendo – é o campo que se desenvolve na parentalidade e criação dos filhos.

A origem etimológica da palavra ‘criança’ vem do latim ‘creare’, que significa ‘crescer’ ou ‘fazer crescer’. A palavra criança significa “produzir, erguer, aumentar”. No processo de criação da criança e de seus pais, o individual em cada um deverá emergir em contraposição à cultura, que é coletiva, e às poderosas influências midiáticas.

Johnny compreende e aceita o drama do existir quando busca estar uno consigo mesmo. Consequentemente as palavras dos sujeitos nas entrevistas ganham significado e profundidade, pois é criado nele alguém que alcança mais plenamente o significado emocional.

Jesse vive com Johnny o que não pôde viver com seu pai, perdido em um mundo inalcançável. Ambos existem juntos, experimentam dor, prazer, pedem perdão.

Com afeto genuíno e intimidade ambos podem experimentar a desvalia. Jesse pode chorar e ser criança – aquele que precisa crescer. Johnny pode aceitar a impotência e desvalia de ser adulto – desmaia, encontra o limite do seu corpo, sua humanidade.

Ao chegar a Israel, Amós Oz, romancista, após algum tempo adota este nome. Ele deixa de lado sua identidade europeia de judeu da diáspora, do pós-guerra, perseguido, desvalido e através da lida diária, necessária para transformar aquela terra numa nação, constrói uma nova identidade. A sensibilidade de futuro escritor não o impede de ir para o kibutz e trabalhar na terra, sob o sol do oriente médio. O nome Amós significa ‘nascido’, o que ajuda a carregar o fardo. Oz significa ‘com força’, aquele que tem alguma potência. Portanto, Amós Oz significa ‘aquele que nasceu com potência para carregar o fardo’. Não se trata de onipotência ou invulnerabilidade, mas ter a potência para aceitar e carregar o que é próprio, o frágil, o vulnerável e construir a partir disto.

Ao serem confrontados com insatisfação, contrariedade, raiva, Johnny e Jesse vivem este turbilhão de emoções conjuntamente. Ao processar estas experiências tornam-se mais fortes e integrados. Eles são distintos, mas parecidos na sua humanidade.

Com a vinda da mãe, Jesse recebe sua mochila – uma bela metáfora para o fardo da existência – que passa a carregar. Este fardo também é levado por Johnny, ambos construíram condições e capacidades para aceitar e brincar com a fragilidade que é característica de todos nós.

AUTORA
Alessandra Ricciardi Gordon
Psicóloga Clínica e Psicanalista \ Mestre pela UNIFESP \ Membro Efetivo e Docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Psicanalista de Crianças e Adolescentes pela IPA \ Secretária de Formação em Psicanálise de Crianças e Adolescentes da SBPSP
E-mail — riccigordon@icloud.com \ argordon@uol.com.br

REFERÊNCIAS
1.Bick, E. (1967). A experiência de pele em relações de objetos arcaicas in Melanie Klein hoje, vol. 1 Artigos predominantemente teóricos. Imago, 1991.
2.Lebovici, S. (1993). On intergenerational transmission: From filiation to affiliation. Infant Mental Health Journal, v. 14, n. 4, 260-72.
3.Winnicott, D. W. (1953). Objetos transicionais e fenômenos transicionais, O brincar e a realidade. p.28. Imago, 1975.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — C’mon C’mon
Título português — Sempre em Frente
Ano — 2021
País — E.U.A.
Duração — 108 min
Realizador — Mike Mills
Argumento — Mike Mills
Produção — Katie Byron
Fotografia — Robbie Ryan
Música — Aaron Dessner e Bryce Dessner
Figurino — Katina Danabassis
Edição — Jennifer Vecchiarello
Elenco — Joaquin Phoenix – Gaby Hoffmann – Scoot McNairy – Molly Webster – Jaboukie Young-White – Woody Norman

SINOPSE
Johnny (Joaquin Phoenix) é um jornalista de rádio que empreende um projeto nos EUA para entrevistar crianças e adolescentes, focando os pensamentos sobre o mundo e o futuro. Mas, a pedido de sua irmã (Gaby Hoffmann), Johnny fica encarregado de cuidar do sobrinho Jesse (Woody Norman), o que traz ao jornalista uma nova perspectiva. Conforme viajam pelo país, Johnny começa a olhar seu próprio mundo de outra forma, ao exercitar sua sensibilidade em escutar verdadeiramente as crianças, para além de um trabalho. Pelo vértice da inocência e perspicácia transformadoras de Jesse, Johnny desenvolve um novo olhar sobre os ensinamentos dos menores aos adultos, em especial, a arte de encarar a vida com simplicidade, habilidade e otimismo que se perdem no caminho da maturidade. (Adoro Cinema, 2022).