O DESAMPARO DA REALIDADE — ‘La Haine’ (1995)

— FILIPE MADEIRA —
A primeira cena, uma das mais notáveis introduções da história do cinema, mostra um cocktail molotov a atingir o planeta Terra, enquanto ouvimos uma voz de narrador dizendo: “Esta é a história de um homem que cai de um edifício de cinquenta andares. Durante a queda, para se tranquilizar, vai repetindo: Jusqu’ici tout va bien. Jusqu’ici tout va bien. Jusqu’ici tout va bien… (até aqui tudo bem…) Mas o importante não é a queda. É a aterragem.”
O meu contacto com este filme ocorreu aquando da estreia, coincidindo com a última fase da licenciatura em Psicologia. Não por acaso, a ideia de um filme francês, filmado em preto e branco e de um realizador (para mim) desconhecido à época, era suficientemente apelativa para valer o potencial risco de passar 1h30m numa sala. Creio que depois da notável introdução a minha atenção estava conseguida, após as primeiras cenas estava rendido ao enredo e a pensar “quem é este Mathieu Kassowitz?!”. No final, La Haine tornou-se um dos “meus filmes”. Visto e revisto, divulgado e partilhado em conversas e instrumento de análise em momentos pedagógicos/ formativos. Admito dificuldades para iniciar uma abordagem à obra, tal a sua identidade. Factores socioeconómicos, grupos minoritários, poder e autoridade, dinâmicas culturais, conflitos da adolescência, identidade individual e grupal, são “apenas” alguns dos tópicos que podem atribuir um foco para nos orientarmos ao longo da narrativa. E La Haine é, desde que o começamos a (vi)ver, isso mesmo: uma identidade.
O enredo do filme é marcado pela descoberta de um revólver por Vinz (Vincent Cassel) na sequência de um conflito entre jovens dos subúrbios de Paris e a polícia. Este cenário introduz o amigo Abdel (Abdel Ahmed Ghili) que fica em coma após as agressões no confronto com as autoridades.
Vinz e os seus dois companheiros, Said (Saïd Taghmaoui) e Hubert (Hubert Koundé), iniciam o espectador numa viagem de 24h desde o bairro nos subúrbios, onde todos residem, até à cidade, criando uma trama pluridimensional onde a ideia de que “Jusqu’ici tout va bien” parece ser a única possibilidade para se viver, pois nada indica que se possa pensar para além de um “só por hoje…”
A incerteza da vida no bairro periférico, a heterogeneidade étnica e cultural e o sentimento de exclusão, alimentam a imprevisibilidade das relações. Por outro lado, os conflitos da adolescência, comuns aos três amigos, mais as responsabilidades que cada um assume, tanto no grupo como nas respectivas famílias, amplia as dimensões da acção, remetendo para a riqueza (e complexidade) multifacetada da análise da narrativa e dos principais personagens.
Vinz será, talvez, o personagem mais complexo do enredo. Encarna uma natureza impulsiva e agressiva. Sem limites ou censura, como se personalizasse uma instância primária (quase a personificação do Id freudiano), com pouca capacidade de pensar e de elaborar as suas emoções. É impulsionado pelo desejo de vingança e legitimado por um poder primário, pois é ele quem encontra e esconde a arma do polícia, aguardando o momento exacto para lhe dar uso (e que será o da morte de Abdel). Vinz consegue transmitir toda a raiva e atitude de oposição que caracterizam o jovem que cresce e vive nas ruas de um bairro social na periferia de uma grande cidade. Também o seu desejo de vingar a morte do amigo é claramente um ato simbólico dirigido à tentativa (primária) de superação dos sentimentos de impotência e vulnerabilidade da sua condição socio-cultural e identitária.
Já Hubert surge como um” intermediário”, com uma parte da personalidade mais madura, capaz de assumir um papel de mediador entre o impulso e a autoridade. Tanto no grupo de pares como na família, é ele quem melhor assume o equilíbrio entre sobrevivência e responsabilidade moral, agressividade e diálogo. Consegue assim ser o sujeito sereno e carismático no grupo, ao mesmo tempo que incorpora uma vida atordoada por diversos traumas.
Saïd é o “joker”, o bufão típico da dramaturgia cómica. O arquétipo que concentra em si a manifestação exagerada de todos os papéis e sentimentos. Grotesco e, ao mesmo tempo, charmoso, é ele quem alimenta o non sense da narrativa. Aparentemente mais despreocupado e até irresponsável, acaba por conseguir a aterragem. Mas o que ficará inscrito no mundo interno do único sobrevivente de um acidente mortal…?
Podemos ver os três personagens principais como um só, tal a clareza da representação caracterial de cada um. Impulso, moderação e despreocupação só não “funcionam” bem (tal como outras características de personalidade) quando exclusivos e é assim que estes personagens se apresentam. O que um tem os outros nem se aproximam. É, também, devido a essa “exclusividade” identitária que a rigidez acaba por ser inultrapassável. Principalmente em Vinz. Sendo evidente que um sentimento forte de pertença a um determinado grupo, gera uma coesão e uma dinâmica relacional intensas, se esse sentimento for exclusivo acabará, do mesmo modo, por criar sentimentos de rejeição e exclusão face a outros grupos. Os personagens do filme percepcionam-se, maioritariamente, como jovens pertencentes a uma minoria socioeconómica e cultural, desfavorecida e excluída de outras identidades (não se sentirão franceses ou europeus, judeus ou muçulmanos, adeptos do clube de futebol da zona, membros de uma associação…). É neste pressuposto de que, para ser “A” não posso aceitar qualquer coisa que seja “não A”, que, na maior parte das vezes, se radica a violência alimentada pela intolerância que de tantas formas se vai manifestando nesta nossa época e que La Haine nos ajuda a enquadrar.
É pois, entre outros aspectos, por estar tão próximo da realidade socioeconómica e cultural da nossa época, que este filme, relembro, desenvolvido no final do século passado, se mantém actual e facilmente cria um sentimento “imersivo” em nós espectadores que, desde o início, somos colocados na narrativa como quase participantes. A natureza intensa e crua tanto da(s) história(s) como das imagens, remete para a demonstração de um absoluto “Real”, onde não há espaço para os outros dois elementos da tríade lacaniana (“Simbólico” e “Imaginário”). Começando na fotografia “binária” a preto e branco, passando pela filmagem recorrendo à técnica de “câmara na mão” (que regista o movimento “tal como ele é”), até à inserção de excertos de imagens reais, tudo no filme aponta para uma concretude absoluta e transmite, desde o início, a sensação de irreversibilidade dos acontecimentos. Para além destes aspectos, assinalemos também, a subtileza do detalhe dos nomes dos personagens corresponderem aos nomes dos actores, como se os próprios tivessem obrigatoriamente de colocar partes de si nos seus personagens e, por consequência, “empurrarem” o espectador para, também ele não poder desviar-se da condição de participante.
Hubert, Said e Vinz são, pois, os representantes simbólicos de todos os participantes aprisionados na realidade “desenhada” por Kassowitz. Os três lutam, em seu nome e em nome do grupo, com e contra as suas identidades, diante da marginalização social e da falta de oportunidades de integração numa vida para além da periferia. Tal como os três companheiros, também os conjuntos habitacionais onde residem funcionam como um microcosmos de uma estrutura social maior que os aliena e desvaloriza, e a sua busca por uma identidade suficientemente sólida, confunde-se com as suas origens, à medida que navegam por estereótipos e preconceitos associados às suas respectivas comunidades. De um ponto de vista socio-cultural, o filme explora de forma directa, o modo como as pressões e estereótipos da sociedade moldam a autopercepção dos sujeitos, alimentando um sentimento de alienação e uma busca por significado e reconhecimento, não só social mas também identitário, referente ao indivíduo e à sua (des)integração.
O filme destaca claramente o impacto das estruturas externas (cenário físico) no mundo interno dos indivíduos. Os projetos habitacionais, caracterizados pela insuficiência económica, negligência social e presença das forças de autoridade, são terreno fértil para tensões sociais e descontentamento. Deste modo, as experiências dos personagens dentro desse ambiente moldam as suas identidades, percepções de autoestima e relações com a ordem e as regras. As estruturas sociais, vivenciadas como opressoras, contribuem para os seus sentimentos de raiva, impotência e alienação, alimentando o desejo de oposição, resistência e desafio.
É pelo sentimento transmitido nesta opressão permanente durante todo o filme que, o espectador/participante começa a questionar se, de facto, Jusqu’ici tout va bien…? Como que avançando a resposta, a vaca da alucinação de Vinz parece demonstrar como, já para além do limite, o indivíduo precisa de encontrar uma forma de regressão ou fuga da realidade. Nessa cena, o personagem recua para um estado alucinatório, possivelmente activando um mecanismo de defesa para lidar com o cenário avassalador que enfrenta. Este retrato parece, assim, reflectir, a linha ténue entre a organização e o caos, enquanto Vinz lida com seus próprios impulsos e as forças externas que ameaçam empurrá-lo para o limite.
La Haine provoca-nos. Empurra-nos para uma experiência participante à medida que cada cena se desenrola. Através dos cenários, da construção dos personagens (que também apelam à identificação do espectador) e ainda da própria narrativa, Kassowitz dá o “golpe final” em qualquer esperança da resolução do enredo num modo happy end, pois que quando a realidade é tratada como tal, impõe-se de forma crua e já não há como seguir por outro caminho. Até onde é o aqui onde tudo vai bem…?
AUTOR
Filipe Madeira
Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta. Membro da Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica (AP)
E-mail — filipe.c.madeira@gmail.com
FICHA TÉCNICA
Título original — La Haine
Título português — O Ódio
Ano — 1995
Duração — 98 min
País — França
Direção — Mathieu Kassovitz
Argumento — Mathieu Kassovitz
Produção — Christophe Rossignon
Montagem — Scott Stevenson, Mathieu Kassovitz
Fotografia — Pierre Aïm
Elenco — Vincent Cassel – Hubert Koundé – Saïd Taghmaoui
SINOPSE
“O Ódio”, de Mathieu Kassovitz, é um filme polémico, pela exposição da violência urbana, em particular a dos bairros degradados da periferia. Os protagonistas são três jovens de origem étnica diferente, um judeu, um árabe e um negro, que vivem nos subúrbios de Paris. Numa noite, no bairro onde moram, um dos amigos brutalmente espancado fica às portas da morte. Vinz jura que, se Abdel morrer, mata o polícia.