A INEXORABILIDADE DO TEMPO — The Bacchus Lady (2016)

— MARIA TERESA SILVA LOPES —

O filme ‘A Dama de Baco’ me fez refletir sobre a questão do envelhecimento. Como envelhecer com dignidade em um país que não oferece nenhum tipo de assistência social a idosos que não possuem uma renda?

A impactante realização sul-coreana do diretor E J-Yong, retrata em um primeiro momento a instabilidade das relações, as distâncias interpessoais e o conceito de família para, em seguida, revelar os impactos do neoliberalismo que arrasta a sociedade do país ao limbo da desigualdade.

É muito comum na Coreia do Sul, já que lá não existe previdência social, que alguns idosos se prostituam como forma de arrecadar algum dinheiro para seu sustento. Essas senhoras que praticam a profissão são chamadas popularmente no país de “Damas de Baco”, referencia à bebida que servem e ao deus grego.

“A finitude do próprio ser é um fenômeno onipresente em tudo o que é vivo. Porém, em contraste com outros seres vivos, nós, humanos, temos a capacidade especial de pensar e refletir a nosso respeito como sujeitos. Essa capacidade de refletir ajuda-nos a aceitar o nosso ser-dessa-forma, bem como a aceitar certas realidades que, na minha opinião, o filósofo Ortega y Gasset descreve de maneira impressionante como um fato antropológico fundamental: …

“Cada um de nós tem a sua própria vida para viver, ninguém pode ser representado nos negócios da vida… ninguém pode sentir ou querer no lugar do outro. … É impossível deixar outro ser humano pensar os pensamentos que cada um precisa pensar para se orientar no mundo, isto é, no mundo das coisas e no mundo das pessoas, e para encontrar a maneira adequada de se comportar. … Não há substituto para isso. … E, na medida em que isso se aplica a todas as minhas decisões, atos de vontade e sentimentos, não posso deixar de chegar à conclusão de que a vida humana, … precisamente em função dessa intransferibilidade, é essencialmente solidão, radicalmente solidão.”(2)

Esse fragmento no artigo de Gabriele Junkers (2) me fez pensar a protagonista do Filme A dama de Baco, que escolhe ser profissional do sexo, porque “a minha vaidade não me deixou catar lixo na rua”, diz a um jovem que a procura, não para ter sexo, mas para saber a sua história. Neste diálogo ela diz que não tem vergonha do que faz, que não gosta de ser chamada de vovó, porque a sua vagina ainda é jovem, e em outro momento diz que escolheu ser prostituta logo após não ter mais idade para seguir com o trabalho assalariado. E para evitar a mendicância, Youn So-young passa as tardes vendendo Baco, um tônico que ajuda a levantar a libido, e faz muito sucesso na Coreia do Sul, oferecendo além do tônico seus serviços sexuais. A personagem fez essa escolha e vive disso. “Não tem trabalho, não tem dinheiro, não tem dinheiro, não tem o que comer”.

O filme começa com So-young indo procurar um médico por sentir que algo está errado com ela, sente um ardor e uma coceira nas partes íntimas. Se sente balançada no momento em que descobre que estava com gonorreia, mas em nenhum momento se mostra frágil ou culpada por isso. Na entrada da clínica médica, ela se depara com uma criança sozinha. Ela não fica indiferente ao menino, e lhe pergunta: onde está a sua mãe? O menino escorrega da pergunta e de sua visão. Ela então segue para o consultório médico. Ali, depois de ser atendida, ela assiste a uma cena do médico sendo golpeado por uma mulher desesperada. Mediante a confusão, ela percebe que o menino era filho da mulher que feriu o médico, e vai atrás da criança, que sai correndo por orientação da mãe, e o protege.

Não deixa de trabalhar, porque esse é de fato seu ganha pão, existe uma integridade na sua atitude, tanto em acolher a criança, bem como com seus clientes. Comunica-lhes que no momento não poderia ter relações, mas poderia oferecer outras formas de obter prazer. Fazia com carinho o seu trabalho e com respeito ao outro.

Ao acolher a criança e se descobrir com gonorreia, ela passa a refletir sobre a sua vida solitária. Sua história retorna, a lembrança do filho que foi para doação, a impotência frente a doença adquirida, as escolhas que fez na vida. Vê uma idosa empurrando um carinho cheio de papelão, olha aquele sacrifício, a cena se passa exatamente no momento em que está tocando na casa da proprietária do imóvel onde mora, para pagar o aluguel. Tudo tem uma nuance da inexorabilidade do tempo, desse que não pára e que nos exige fazer escolhas.

A rotina de programas de Young muda quando ela contrai a doença, depois que as concorrentes da praça descobrem que ela estava doente. Ela se afasta e vai buscar seus parceiros em outros pontos da praça. Ela sempre aparece solitária, debaixo de uma ponte, que simula um rio seco, que fica na praça, achei simbolicamente perfeita essa imagem. Como se ao envelhecer o sujeito estivesse secando para o prazer, para a vida.

Nos novos lugares onde começa a circular reencontra antigos clientes. Ela tenta refazer alguns laços, pergunta por clientes que foram generosos com ela. E tem a notícia de que alguns estão hospitalizados, outros já não se lembram mais de nada. Ela parece se comover e vai visitar um dos clientes. Fica horas ao seu lado, quieta. Até o momento que ele pede ajuda para dar fim a sua vida, por não aguentar mais a solidão e a indignidade diante da inutilidade da própria vida. Conta para o cliente, que contou sobre a condição dos outros, que ajudou o cliente hospitalizado a morrer. Este, enxerga nela, a oportunidade de tirar a vida de um grande amigo(dele, e que também havia sido cliente dela) e que perdeu a memória, e a dele mesmo: “dar fim a essa solidão patética nessa vida sem esperança”, “eu me sinto indefeso”. Ela tem compaixão pelo homem e resolve ajudá-lo a morrer. Não consegue dizer não para esse cliente/amigo, pois na verdade ela não consegue dizer não para ela mesma, que não via saída por se perceber envelhecendo e sem condições mínimas de ter uma vida decente, digna. Faz a escolha de ajudar com plena consciência de que poderia ser descoberta e ser presa. Calculou o resto de sua vida na penitenciária, pelo menos tendo três refeições por dia, e vivendo o marasmo até à sua morte.

Esse contraste de mundos entre os dois personagens principais perdidos, à margem, desenvolve um belíssimo arco. O encontro com o menino ingênuo coloca à prova o instinto maternal de Young e desenterra um passado que ela achava que jamais viveria novamente, que estava distante de uma constituição familiar. Essa concepção de família é construída ao longo do filme juntamente com sua vizinha transexual (que também se prostitui) e um jovem morador com os quais a protagonista convive no seu pequeno prédio, muito similar a um cortiço. Vivem como se estivessem em família, se preocupam uns com os outros, se ajudam e parecem se gostar.

Essa narrativa envolvendo uma idosa errante frente a uma criança que precisa de seu auxílio não é nova e, dependendo da abordagem, pode resultar em um clichê ou em uma verdadeira obra-prima — podemos recordar facilmente de Central do Brasil (1997), por exemplo. A Dama de Baco está longe de apresentar um primor sem-igual, porém, com as devidas proporções, é muito similar ao filme de Walter Salles. J-Yong consegue desenvolver belíssimos e contraditórios personagens ao longo de uma história que desenterra o passado de calamidade social e econômica que criou um país com uma grande desigualdade sistêmica, muitos passam grandes perrengues para sobreviver.

A escolha de ser uma profissional do sexo me soa também como uma forma de fugir da solidão, de fugir de um fim triste, embora tenha feito exatamente essa escolha quando se permite ajudar antigos clientes a fazerem suas passagens, de um mundo que abandona e invisibiliza as pessoas idosas. Para não morrer de fome, e prevendo um futuro sem perspectiva ela faz sua escolha sabendo dos riscos, mas com dignidade. Como diz Ortega y Gasset “cada um de nós tem a sua própria vida para viver, ninguém pode ser representado nos negócios da vida”. E assim Young sucumbe à sua escolha final.

AUTORA
Maria Teresa Silva Lopes
Membro Associado Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro \ Diretora do Instituto de Educação Integrada Garotos sem Fronteiras (ONG) \ Coordenação do Projeto Travessia/SBPRJ.
E-mail — mariateresalo18@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Freud, S. (1916). A Transitoriedade. In: (1856-1939) Introdução ao Narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) / Sigmund Freud; tradução e notas Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Títulos Originais: Gesammelte Werke e Studienausgabe “Obras completas Vol.12”
2.Junkers, G. (2024). A Capacidade de estar só como prova de maturidade para o envelhecer. In: Revista Brasileira de Psicanálise, Vol.58, n.1, pg.27-43, 2024, pp.40-41.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Jug-yeo-ju-neun Yeo-ja
Título inglês — The Bacchus Lady
Título português — A Dama de Baco
Ano — 2016
País — Coreia do Sul
Duração — 110 min
Direção — E J-Yong
Roteiro — E J-Yong
Produção — E J-Yong
Cinematografia — Young-no Kim
Música — Jang Young-gyu
Edição — Hahm Sung-Won
Elenco — Yoon Yuh Jung – Choi Hyun-Joon – Kim Han Na – Yoon Kye Sang – An A-zu – Yoon Kye-sang – Jeon Moo-song – Gong Ho Seok – Park Kyu Chae – Jo Sang Hyung – Park Sung Jin – Kim Soo Woong

SINOPSE
O filme olha para a questão da prostituição de idosos na Coreia do Sul. So-young, uma senhora de 65 anos presta serviços sexuais para idosos do sexo masculino, usando o pretexto de vender Baco (Bacchus – uma bebida energética) para eles.
So-young é uma “Dama de Baco” que ganha a vida como prostituta. Quando vai ao hospital devido a uma DST, ela encontra um menino coreano-filipino sozinho na entrada e se incomoda por vê-lo só. Na saída se dá conta que a mãe do menino se envolve numa confusão, e decide cuidar dele. Apesar de sua decência e bondade, ou mais por causa delas, a vida de So-young toma um rumo sombrio.