O DESPERTAR DA ALMA: UM RENASCER — The Milk of Sorrow (2009)

 

— CRISTINA FARIAS FERREIRA — 

“La Teta Asustada”, realizado pela talentosa cineasta peruana Claudia Llosa, arrebatou o Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2009 e foi indicado ao Óscar de Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte, entre vários outros prémios que obteve. O filme desenrola-se com uma abordagem cinematográfica rica em profundidade estética e simbólica, explorando temas como as consequências do trauma de guerras, desigualdade social e peculiaridades da cultura andina. 

A narrativa inicia-se com a morte de Perpétua, mãe de Fausta (interpretada magistralmente por Magaly Solier), uma mulher indígena que sofreu abusos atrozes durante o conflito interno no Peru. No leito de morte, Perpétua canta uma canção em quéchua que narra as violências sofridas, incluindo abuso sexual por soldados. Em seguida, é Fausta quem canta para a mãe, com ternura. Após a morte da mãe, Fausta sangra pelo nariz, desmaia e é levada ao hospital pelo tio que, ao conversar com o médico, descobre que Fausta inseriu uma batata na vagina e não permitiu que a removessem. O tio revela que Fausta nasceu durante o terrorismo e que sangra apenas quando está com medo. Acrescenta que a sobrinha sofre da doença “teta assustada” — um mal transmitido pelo leite materno de mães traumatizadas, deixando as filhas em constante medo e sem alma.

A cineasta refere (2) ter-se inspirado no livro da antropóloga Kimberley Theidon, “Entre Próximos”, que menciona a síndrome da “teta assustada” através de testemunhos de mulheres maltratadas. A partir desses depoimentos, o filme ousa imaginar poeticamente a realidade. Os ecos da canção de Perpétua ressoam como um lamento ancestral, revelando uma dor profunda inscrita nos corpos das gerações seguintes. Fausta, com esta herança, vive num estado perpétuo de pavor e contenção.

Cantando para sua mãe, “vi tudo do teu ventre, vi o que te fizeram, senti a tua dor por isso agora uso isto como um escudo de guerra, como um tampão (…)”. Vemos o seu desespero e ligação constante a um passado traumático. O abuso sexual, tema central, constitui uma situação limite que afeta profundamente a história de vida e a existência de Fausta, inscrevendo dor e trauma em seu corpo, causando rejeição de sua própria sexualidade. Seu terror manifesta-se como uma ansiedade paralisante, que lhe rouba a libido, obrigando-a a apoiar-se nas paredes para não atrapalhar as almas penadas que a rodeiam e para não morrer como o irmão. A ideia de que a alma assustada se esconde debaixo da terra, Pachamama, uma divindade da mitologia andina, amplamente venerada, associada à fertilidade da terra e ao feminino, representa uma metáfora poderosa para o impacto do trauma.

Milheiro (3) propõe a existência de um saber do corpo, inscrito filogeneticamente, ontogeneticamente e individualmente. Não se trata de um saber mental ou racionalizável, mas sim de um saber intrínseco, estruturante da identidade, fundamental na saúde e na doença. O terror que Fausta sente reflete essa profundidade do saber corporal.

Após a morte de sua mãe, Fausta precisa de dinheiro para o enterro e, como irá realizar-se um casamento na família em breve, o seu tio diz-lhe que não quer ver mortos nem tristezas no casamento. Assim, Fausta apressa-se a trabalhar como empregada na casa da pianista Aída, da alta burguesia peruana, em crise de criatividade. Fausta é ouvida por Aída cantando uma canção original que, impressionada com o seu talento, propõe um pacto: dar-lhe-á uma pérola de seu colar desfeito por cada canção que Fausta compuser. Esse acordo permitirá a Fausta enterrar sua mãe e seu passado, além de ajudar a desvelar suas emoções reprimidas. No interior da mansão para onde foi trabalhar, cercada por um muro alto, onde lá fora habita o povo de Lima, Fausta era inicialmente visualizada somente através dos reflexos dos espelhos, sempre tentando passar despercebida.

Os planos meticulosamente compostos de Llosa evocam com frequência corpos desmembrados, uma alegoria aos corpos e vidas fragmentadas pelo conflito armado. A ideia de labirinto permeia o filme, representando os padrões inescapáveis dos aprisionamentos internos. O rigor estético, a genial intuição e compreensão emocional de Llosa (2) fazem do filme uma reflexão sobre a complexidade da vivência humana e a dualidade intrínseca da vida e da morte.

Se o filme começa com uma música que vai permear toda a narrativa, na personagem perpassa um silêncio denso de um corpo que se move angustiadamente, na tentativa derradeira de se ocultar de si e do outro sentido sempre, como potencialmente perigoso, ao mesmo tempo que se pressente a emergência em se libertar.

A certa altura, Fausta inventa uma canção da sereia, onde entoa que os músicos fazem um pacto com a sereia e, se quiserem saber quanto tempo durará o pacto, têm de apanhar de um campo escuro, um punhado de quinoa para a sereia contar. Cada grão de quinoa representará um ano e, quando a sereia acabar de contar, largará o homem ao mar. Fausta continua cantando que a mãe lhe disse que os grãos são difíceis de contar e que, se a sereia se cansar de os contar, o homem permanecerá com o seu dom para sempre. 

É esta a música que Aída tocará no concerto que acontece há mais de 20 anos e que, nesse ano, a sentir-se sem inspiração, a certa altura atira o piano pela janela. Contudo, após o concerto, onde apresentou a música composta por Fausta e desta ter sido muito   bem recebida, Fausta sente-se orgulhosa ao ver sua música apreciada. Aída, de regresso a casa ao ouvir Fausta dizer que gostaram do concerto, expulsa-a do carro e Fausta, da estrada, exige as pérolas a que tem direito.  Assim, iniciou-se a recuperação de sua voz e de seu lugar, numa união que se foi transformando, gerando para ambas algo novo. 

A jornada emocional de Fausta para enterrar o passado e libertar-se do trauma culmina pela sua ligação ao jardineiro Noé, com quem vai paulatinamente desenvolvendo uma ligação. Em determinado momento, é Fausta quem lhe solicita a remoção da batata, e para atender ao seu pedido, Noé leva-a ao hospital. A remoção simboliza o desprendimento de um peso emocional, possibilitando libertação e transformação. No final, Fausta carrega as pérolas, que manteve sempre em sua mão durante a remoção, sinal de recuperação de sua alma e da apropriação, a partir da capacidade de criar, do próprio desejo. 

Através da música, lugar possível da sua voz, Fausta transpõe a morte, a que se impôs na paralisia do terror subjacente de seu corpo sem vida. A canção, inicialmente um eco de dor, transforma-se em veículo de um renascer.

Muitos grãos de quinoa teriam sido necessários contar para Fausta conseguir finalmente enterrar sua mãe/seu passado e levá-la até ao mar. Assim, como muita perseverança, trabalho árduo e paciência serão necessários num processo psicanalítico para a elaboração das consequências de traumas. Tal como os homens que são levados pela sereia, também Fausta leva sua mãe que permanecerá para sempre no seu interior, permanentemente viva, suas boas memórias não se apagarão nunca, seu amor recebido, o seu bom objeto interno não se desvanecerá jamais. 

A imagem de uma flor desabrochando no vaso onde a batata foi colocada após ser retirada simboliza a transformação de um corpo ferido em um corpo vibrante e cheio de vida. Esta flor, oferecida por Noé, representa Eros triunfando sobre a morte, onde a vida impera. A batata germinada e florida representa a capacidade de criação e de transformação da dor em algo belo.

Autora
Cristina Farias Ferreira
Psicóloga Clínica e Psicanalista \ Mestre e pós-graduada em Psicopatologia Clínica e Psicologia Clínica \ Membro Associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytical Association (IPA) \ Formadora e supervisora oficial da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica (SPPC).
E-mail — c.fariasferreira@gmail.com

Referências 
Imagem — licenciada pela Midas Filmes para uso exclusivo na ilustração do filme para o Blog Cinema e Psicanálise.
1.Farias Ferreira, C. (2016). Texto baseado na comunicação”Corpos, Eros e Tanatos – Reflexão através de excertos de filmes sobre a trama significativa construída.” Jornadas de Abril 2016 “Das Falas do Corpo ao Corpo do Mito” da SPPPG (Sociedade Portuguesa de Psicodrama Psicanalítico de Grupo).
2.Lhosa, C., & Braier, N. (2009). Comentários da diretora e da diretora de fotografia. In A teta assustada. (DVD). Midas filmes.
3.Milheiro, J. (2001). O corpo sabe. Revista Portuguesa de Psicossomática. Vol 3, nº2 Julh/Dez 2001, pp-9-38. Sociedade Portuguesa de Psicossomática, Porto.

TRAILER

Ficha Técnica
Título original — La Teta Asustada
Título inglês — The Milk of Sorrow
Título português — A Teta Assustada
Ano — 2009
Duração — 95 min
Países — Perú – Espanha
Direção — Claudia Lhosa
Argumento — Claudia Lhosa
Produção — Antonio Chavarrias, José Maria Morales,Claudia Lhosa
Fotografia — Natasha Braier
Música — Selma Mutal
Edição — Frank Gutiérrez
Direção Artística — Patricia Bueno e Susana Torres
Elenco — Magaly Solier – Sisi Sanchez – Efraín Solís – Marino Ballón – Delci Heredia – Maria del Pilar Guerrero

Sinopse
Fausta padece de uma doença mítica denominada de Teta Assustada, transmitida pelo leite materno das mulheres que foram violadas durante o conflito armado interno no Perú. Mesmo após o término do conflito, Fausta permanece doente assombrada pelos medos que lhe roubam a alma e consequentemente sua vida. À beira da morte, sua mãe, Perpétua, entoa uma canção em quéchua, narrando as terríveis violências sofridas durante a guerra. Após o seu falecimento, Fausta enfrenta seus terrores e fantasmas, até que uma ligação afetuosa com o jardineiro Noé proporciona-lhe um renascer.