A COMPULSÃO E O APAGAMENTO DO SUJEITO— The Whale (2022)

— LIA HOLANDA —
A boca que consola, acalenta e trai, se enche escoando o desejo, para dentro, ou fora de si. O peso de tudo reter, na intimidade do corpo e da casa, um ambiente inóspito, que reduz o próprio mundo interno, a mobilidade. Deslocar-se 3 cm para o lado, pode implicar não voltar, mas para onde se quer ir? O repertório é pequeno mas: “a baleia não tem emoções”, na passagem de Moby Dick, que retrata algo afim do que restou de seu mundo psíquico.
As emoções são engolidas, e a sua subjetividade por algumas vezes regurgitada em sala de aula: “Só me digam alguma coisa honesta!”. Charlie ansiava por algo que viesse de fora e ressoasse dentro, mesmo refém da letargia e dificuldades que seu corpo impusera. Em determinada cena fica bem clara a condição daquele corpo como escudo, ele não se preocupa com a facada, porque para atingir algum órgão importante, teria que transpassar camadas densas de gordura, um contraponto psiquicamente falando, pois o que aquele corpo simbólico mais queria, era ser tocado por algo, mas camadas de defesas se sobrepunham.
Enquanto isso, engolia compulsivamente, de fato engolia, por vezes deixava de mastigar. Uma compulsão tem a ver com o avesso do prazer, é o descontrole, a anestesia de uma parcela do ser que remete ao todo, um objeto fetiche que tampona a falta, ou pelo menos pretende, e repete, repete… Nesse percurso, Charlie até lembra da própria história, mas como nos esclarece a passagem: “a baleia não tem emoções”, é um constante devorar do não saber. Carrega o peso de uma bagagem desconhecida, testando os limites de um corpo psíquico pouco continente.
A enfermeira Liz (cunhada), divide uma dor empática, mas executa uma operação inversa à destrutividade — o cuidar. Ela cumpre o papel de dividir o sofrimento, e ao mesmo tempo colocá-lo na realidade do próprio corpo, sem deixar de respeitar até onde o desejo dele alcança. Em uma cena importante no que diz respeito à relação dos dois, Charlie se dá ao luxo de deslizar na cadeira de rodas, pelos cômodos, quase como se estivesse acessando uma nova parte dele, que estava adormecida, ou até mesmo desconhecida. Charlie circula como se fosse um hóspede, unindo aqueles fragmentos, para quem sabe um dia ser inteiro. Mas como Liz nos lembra, demarca em cena, uma desesperança surge na relação dos dois: “Ninguém salva ninguém”. A cunhada, representante do cuidado, também não sabe o que fazer com a própria dor, vemos o desamparo aflorar naquele momento, deixando o espectador angustiado por não encontrar saídas possíveis.
A própria existência e a passagem dos dias é demarcada pela hora do delivery, como sendo um encontro com o outro que aparentemente se importa com ele, ou pelo menos verifica se ainda está vivo. Ele vive essa trama em sua fantasia se escondendo sempre, até que em uma das noites o entregador o vê por acidente e faz um semblante de nojo — realmente ninguém vai ser salvo.
Ao final do filme, ele liga a câmera durante a aula, numa espécie de tentativa de gerar choque nos alunos, mas o que ele gostaria de mostrar, a câmera não alcança e a partir daí ele foi invisibilizado sem volta, era a cartada final.
Por falar em final, quem o ajudará com essa construção, é a filha, representante do seu próprio eu ideal, quase como uma extensão dele mesmo, uma relação narcísica, onde canaliza todos os seus investimentos financeiros ao longo da vida para poder sustentar o seu olhar.
Ao longo do filme, a praia representa ao mesmo tempo o lugar de origem, acolhimento e essência, a baleia ruindo no concreto, desliza-se para a porta iluminada que conduz até à filha ao som daquela leitura apressada, que permeia todo o filme em algum tipo de tentativa de aproximação com o desejo, finalmente a baleia foi alforriada da realidade. A enfermeira conduziu o encontro possível para cessar o flerte com a morte, acatando a insistência da filha para ficar a sós com ele, o abraça e diz: nos vemos lá em baixo. O corpo perde peso, flutua, ganha proporções ilimitadas, a alma deixa o corpo descansar, abandonar aquela fixação no passado, nos infortúnios.
Liz estava certa, infelizmente só o corpo sem alma poderia chegar ao térreo do apartamento naquelas circunstâncias. A finitude conhecida de todos nós, sinaliza que o corpo é passagem, mas também esclarece e ajuda a acessar questões psíquicas, se não temermos esse encontro sem precisar descer as escadas.
AUTORA
Lia Holanda
Psicóloga Clínica \ Psicanalista pelo CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos- SP)
E-mail — liahollanda.pontes@gmail.com
FICHA TÉCNICA
Título original — The Whale
Título português — A Baleia
Ano — 2022
País — E.U.A.
Duração — 117 min
Realizador — Darren Aronofsky
Argumento — Samuel D. Hunter
Produção — Jeremy Dawson
Fotografia — Matthew Libatique
Música — Rob Simonsen
Edição — Andrew Weisblum
Maquiagem — Adrien Morot
Elenco — Brendan Fraser – Sadie Sink – Hong Chau – Samantha Morton – Ty Simpkins
SINOPSE
Isolado do restante do mundo, um homem com mais de 200 quilos tenta se reconectar com sua filha distante enquanto lentamente se alimenta até a morte.