“… VIVER NÃO É PRECISO” — Anatomy of a Fall (2023)

— ROSEMARY DE FÁTIMA BULGARÃO —

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DE UMA QUEDA

A dupla de roteiristas, Justine Triet e Arthur Harari, utilizou temas aparentemente banais como família, casal, filho e tribunal, para criar um drama de suspense que consegue representar, entre outras coisas, tanto a complexidade da mente humana, como a guerra de narrativas que caracteriza a atualidade.

A direção de Triet, sintonizando diálogos, músicas fortes e repetitivas, cortes de cena, jogos de iluminação e movimentos de câmeras, produziu mais que um filme, produziu uma bela experiência.

Na cena de abertura, primeiro escutamos as vozes de duas mulheres e em seguida aparece a imagem de ambas conversando, sugerindo um clima que deixa entrever, sensualidade.

Sandra é uma escritora de sucesso e está sendo entrevistada por uma bela estudante até que uma música ensurdecedora impede a continuidade da entrevista. Um tanto constrangida, explica que seu marido, Samuel, está trabalhando no andar acima e sempre coloca música alta para trabalhar. As duas se despedem e Sandra sobe as escadas.

Na cena seguinte, o filho de 11 anos de Sandra e Samuel, Daniel, que é deficiente visual, está retornando de um passeio com seu cachorro Snoop, quando encontra o corpo de seu pai, estendido na neve. Há um grande impacto e daí em diante somos capturados pelas identificações com os conflitos, sofrimentos e as mesmas dúvidas dos personagens.

O filme, aparentemente, vai girar em torno da morte suspeita de Samuel. Suicídio? Queda acidental? Homicídio? Mas, o mote da morte suspeita, funciona como uma ferramenta precisa para provocar dúvidas e colocar em queda tudo que acreditamos ser uma verdade fechada.

As cenas de tribunal demonstraram isso ao propor a pergunta – o que é a verdade? E vamos (re)descobrindo que tudo que temos são aproximações/versões da verdade e que julgar é por nossa conta e risco.

Essa constatação fragiliza e rompe fantasias de onipotência. Sem o chão das certezas, rodopiamos, feito aqueles dançarinos dervixes, num vórtice de ideias, como bem nomeou Fábio Herrmann (4).

Outra cena, logo no início do filme – uma bolinha, em queda, escada abaixo, também pode ser entendida como uma síntese de todas as quedas que vamos assistir e sofrer ao longo do filme.

A pergunta que me acompanhou – como é que se disseca uma queda? E qual queda? Da mulher independente e empoderada? Do império da masculinidade e do machismo? Ou a queda da ingenuidade da criança? Da família? Do casal? Da busca impossível da verdade e da certeza? Dos limites entre ficção e realidade? Da sexualidade monolítica? Da paternidade? Da maternidade?

Desde que Freud (2) desbiologizou a anatomia, revelou que ela transcende limites fixos.

Anatomia das quedas… o filme tensionou e rompeu com as definições calcificadas de todos os temas que tocou.

E revelou, sem pudor, a complexidade da vida e da mente humana, assim como das escolhas que precisamos fazer. Na perspectiva do filme, ninguém é vítima de ninguém. Nada é plano, os sentimentos possuem várias camadas e circulam em diferentes dimensões da nossa alma.
E isso me fez pensar na famosa frase, e talvez velho e bom chavão, de Fernando Pessoa, quando ele diz que se “navegar é preciso, viver não é preciso”.

Outro ponto interessante do filme foi a clareza com que demonstrou a força da pulsão de morte, tal como postulada por Freud (1) e desenvolvida por André Green (3), em sua vertente da destrutividade.

No filme, encontramos figurabilidade para essa triste e grave situação emocional e, um exemplo é a cidade natal de Samuel, cenário íntimo da vida familiar, onde se desenrola boa parte da trama. Ali predomina a frieza da neve e o isolamento do chalé, potencializando a sensação de solidão e o sofrimento daquela família profundamente machucada, desde que Daniel foi atropelado e se tornou deficiente visual.

Os sentimentos de culpa/culpabilização decorrentes do acidente de Daniel, se infiltraram e parece que desorganizaram a estrutura paterna e materna do casal. Enquanto o pai lidou com o excesso de angústia, ficando obcecado em reparar o estrago que o atropelamento causou no filho, abandonando emocionalmente sua mulher e seu desejo de ser escritor, Sandra, a mãe, se negou a apodrecer, nas palavras dela, e buscou sua satisfação sexual e vitalidade, tendo casos e escrevendo seus livros de sucesso.

Mas, eu fiquei pensando que tanto a dedicação obcecada do pai, quanto o não querer apodrecer da mãe, independente de sexo ou gênero, não me pareceram ter funcionado como uma boa forma de cuidar de si mesmo, do filho ou da família. Afinal, todos estavam sofrendo.

Os sentimentos de frustração, inveja, violência, culpa, e os desencontros, além da impossibilidade de escolher e sustentar as próprias escolhas, predominaram no ambiente familiar.

E esses sentimentos, ao não encontrarem escuta e sentido, produziram excesso de sofrimento. Diante dos excessos, precisamos de algum tipo de filtro, ou correremos o risco de passar ao ato. E foi o que testemunhamos. A violência entre o casal evoluiu de muda/fria, para uma violência verbal, culminando com a trágica violência física.

Quanto menos encontramos compreensão, maior a chance de regredir para o território das diversas formas de violência.

E, no território das violências, as palavras perdem seu poder de comunicar, de criar e de manter vínculos; é onde pululam os atos…

Quando há predomínio da destrutividade, os sentimentos de desesperança, desconfiança e desconsideração, trabalham desfazendo ligações e desfazendo vínculos afetivos. Prevalece uma força de desligamento e desinvestimento da vida.

Coube a Daniel, ao descobrir que nunca teria certeza do que aconteceu com seu pai, buscar/encontrar em Snoop e Marge, parceiros amorosos confiáveis que, ao sustentá-lo emocionalmente, facilitaram que ele pudesse imergir em si mesmo para encontrar a sua verdade.

Aliás, vale citar – durante toda a turbulência, Snoop ocupou o lugar de objeto transicional (5), para todos daquela família.

No final do filme, a situação parece se acalmar, independentemente do resultado do julgamento.

O clima emocional mudou na medida em que ocorreu alguma compreensão afetiva. Embora pareça algo simples, compreensão afetiva não é pouca coisa, e tem a ver, como já assinalado, com a força da pulsão de vida.

E isso não é tarefa fácil, principalmente nessa babel atual de desencontros e solidão que vivemos, onde as polarizações potencializam idealizações e sentimentos que variam da desconfiança e indiferença, até ao ódio.

Vou finalizar com as palavras que Marge disse a Daniel: “quando não se sabe tudo, é preciso escolher no que acreditar”. Ao tolerar a dor de cair do paraíso das certezas, Daniel conseguiu escolher no que acreditar para, inclusive, se posicionar no tribunal.

Essa é a melhor chance que temos de criar aberturas e escapar das garras da alienação da resposta pronta. Se dispensarmos o pensar, impedimos que o misterioso e o enigmático circulem e rompam com os sentidos fixos/aprisionantes, que tornam a vida opaca e empobrecida.

AUTORA
Rosemary de Fátima Bulgarão
Psicanalista \ Membro Efetivo e Docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo \ Supervisora e Coordenadora por mais de 20 anos do Instituto Crescendo que oferece gratuitamente psicoterapia e outros tratamentos para crianças e adolescentes em condições de vulnerabilidade.
E-mail — rosebulgarao@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Freud, S. (1920). Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Trad. J. Salomão. Imago. (Originalmente publicado em 1920)
2.——— (1925). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In:Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 19). Trad. J. Salomão. Imago. (Trabalho original publicado em 1925)
3.Green, A. (2014) ¿Por qué las pulsiones de destrucción o de morte? 1ªed. Amorrortu.
4.Herrmann, F. (2001). O método da psicanálise. In: introdução à teoria dos campos. Casa do Psicólogo, 2001.
5.Winnicott, D.W. (1971). O brincar e a realidade. Imago, 1975.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Anatomie d’une Chute
Título inglês — Anatomy of a Fall
Título português — Anatomia de uma Queda
Ano — 2023
País — França
Duração — 152 min
Realizador — Justine Triet
Argumento — Justine Triet e Arthur Harari
Produção — Marie-Ange Luciani e David Thion
Fotografia — Simon Beaufils
Edição — Laurent Sénéchal
Elenco — Sandra Hüller – Swann Arlaud – Milo Machado-Graner – Antoine Reinartz – Samuel Theis – Jehnny Beth – Saadia Bentaieb – Camille Rutherford – Anne Rotger – Sophie Fillières

SINOPSE
Samuel é encontrado morto na neve, caído da varanda da sua casa nos Alpes franceses, onde vivia com a mulher, Sandra, uma famosa escritora alemã, e Daniel, o filho de onze anos. Instala-se a dúvida: terá sido acidente, suicídio ou homicídio? Durante a investigação e ao longo do processo em tribunal, o casamento é escrutinado, Daniel é envolvido e pressionado criando uma inevitável tensão na relação entre mãe e filho.