MÚSICA: UMA LINGUAGEM PARA A EMOÇÃO —The Story of the Weeping Camel (2003)
— MARGARIDA BILREIRO —
É primavera no deserto de Gobi. Os terrenos mantêm-se áridos, fazendo sobressair uma paisagem que permanece inóspita, onde só as tempestades de areia insistem em manter-se como pano de fundo. O tempo corre devagar. A altura é de renovação e de procriação e é neste contexto aparentemente infértil que várias camelo-fêmeas dão à luz. Porém, uma delas manifesta-se em grande sofrimento.
“A História do camelo que chora” é uma obra cinematográfica cativante, que se apresenta em formato de documentário e nos convida a mergulhar na vida de uma família nómada que vive na Mongólia. Exibido pela primeira vez em 2003 e vencedor de vários prémios, este filme dirigido pelos cineastas Byambasuren Davaa e Luigi Falorni coloca, a meu ver, o Trauma como elemento central.
Mais do que uma história sobre nómadas e camelos, a obra oferece uma visão íntima da relação entre os pastores mongóis e os seus animais, permitindo uma experiência envolvente que nos transporta para as profundezas da condição humana. Não querendo antropomorfizar os camelos, torna-se possível, a partir dos elementos oferecidos pelo filme, pensar o Trauma, a Depressão Pós-parto, as dificuldades na relação Díada Mãe-Bebé e as questões ligadas à sensorialidade como única forma de comunicar.
A primeira vez que vi o filme não pude evitar uma enorme comoção, não só pela beleza e poesia que apresenta, mas sobretudo pela facilidade com que se estabelece uma ligação à prática clínica e a tantos aspetos comuns presentes no sofrimento humano. Revisitei o trabalho com mães deprimidas, com pacientes mais regredidos e sobretudo com crianças autistas, onde por vezes é necessário inventar novas formas de comunicar.
Perante o sofrimento atroz do camelo-fêmea, a família nómada, que respeita de forma admirável a privacidade e o espaço da criatura, vê-se obrigada a intervir. Após um parto muito difícil e traumático, dá à luz uma cria albina e rejeita-a. O pequeno camelo, frágil e diferente de todos os outros, tenta várias aproximações à mãe, que se recusa a amamentá-lo e afasta-o. O sofrimento da mãe e da cria tocam-nos profundamente. A imagem cinematográfica do deserto árido como pano de fundo torna-se metáfora e amplia ainda mais a dificuldade deste encontro. A mãe isola-se e mostra-se intocável numa postura corporal que denota uma grande tristeza e mau estar. Apenas uma mulher – também ela mãe de uma criança pequena – se aproxima numa atitude de profundo respeito, cumplicidade e empatia.
A família, visivelmente angustiada e preocupada, faz várias tentativas de aproximação enquanto alimenta a cria artificialmente, sabendo que na impossibilidade de substituírem a mãe, a pequena cria albina terá poucas chances de sobreviver. Após várias tentativas fracassadas para reconciliar a mãe e a cria, o Patriarca da família refere haver apenas uma maneira de resolver o problema: através da música.
Como vivem isolados e longe de centros urbanos, enviam os seus dois filhos, de treze e seis anos, numa longa viagem, repleta de descobertas, para que possam resgatar um músico capaz de devolver a mãe à sua cria. O que acontece com a chegada do músico não pode ser traduzido em palavras e aquilo que aqui descreverei não substitui o visionamento da beleza do momento: Um músico toca Morin Juur, assim se chama a guitarra tradicional mongol, enquanto a mulher – aquela que sempre acompanhou a mãe, canta e a acaricia. Numa rara e bela imersão, este casal – qual dupla terapêutica, transporta-nos para uma espécie de Maternage onde só a sensorialidade pode fazer sentido. Na inutilidade do uso da palavra é o som que embala de forma misteriosa, que permite à mãe em sofrimento sentir e exteriorizar as emoções. A musicalidade da voz permite alguma coisa à qual se vincular, se envolver, abrindo uma linha de comunicação auditiva onde a presença do Outro assume significado.
Sempre me fascinou a comunicação no seu sentido vasto, muito para além das palavras. Não pretendendo de todo retirar o peso e a importância que estas têm; é através delas que se veiculam ideias, pensamentos, sonhos, interpretações e metáforas. É através da palavra que se torna possível aceder a um maior entendimento dos processos internos, conscientes e inconscientes, à transformação e à elaboração mental, criando possibilidades de narrativas mais suportáveis. Este filme, (re)ativa em nós a difícil tarefa que é comunicar com pacientes que apresentam estados mentais ainda pouco desenvolvidos. Quando o material clínico não assenta em expressões verbais mentalizadas e representadas (como tantas vezes acontece em situações de trauma), mas antes em formas primitivas de comunicação motora, corporal e pré-verbal colocam-se-nos verdadeiros desafios.
Fazendo uma breve incursão na evolução do conceito de Trauma, Freud, relaciona-o com a ausência de ab-reação, ou seja, a impossibilidade de existir uma descarga emocional através da qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de um acontecimento traumático. O afeto reprimido é vivenciado como desprazer e compromete a homeostase do sujeito (Freud, 1893). Ferenczi postulou, a partir das teorias de Freud, a ideia de que o choque traumatizante tem como efeito a emergência de um excesso pulsional não simbolizado cuja intensidade insuportável impele o aparelho psíquico a tentativas de evacuação que na maior parte das vezes assumem uma dimensão destrutiva ou mesmo mortífera.
Poder pensar na Palavra é então poder pensar no que está antes dela, naquilo que é irrepresentável e que apenas na relação intersubjetiva e no encontro com o Outro se torna possível.
A música assume um lugar privilegiado porque possui uma linguagem universal e uma força transcendente que vai além das palavras e se conecta diretamente às emoções mais profundas. Como refere Schopenhauer “a inexprimível profundidade da música, tão fácil de compreender e tão inexplicável, deve-se ao facto de reproduzir todas as nossas mais profundas emoções.”
É então a partir do cruzamento entre a música e a presença de um Outro que está lá para dar sentido, que assistimos ao (re)encontro da mãe com a sua cria, restabelecendo-se a conexão entre corpo e emoção. A possibilidade de voltar a “sentir” e a intensidade do momento é transbordante. A família nómada, que se encontra reunida, partilha o momento e emociona-se.
Não resisto por fim a recordar e citar João dos Santos (2009): “A música e o canto são formas a que poderíamos chamar de emoção pura, nas quais a sugestão no sentido da sintonização emocional é dada pelo ritmo que se liga diretamente à expressão corporal e à forma particular de motórica que é a palavra. Ritmo significa, na vida humana e no plano biológico, equilíbrio comunhão e comunicação”.
AUTORA
Margarida Bilreiro
Psicanalista, membro associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytical Association. E-mail — mbilreiro@gmail.com
REFERÊNCIAS
1.Kupermann, D. (2019). Por que Ferenczi ? Zagodoni.
2.Sacks, O. (2008). Musicofilia – Histórias sobre a Música e o Cérebro. Relógio d´Água.
3. Santos, J. (2009). É Através da Via Emocional que a Criança Apreende o Mundo Exterior. Assírio e Alvim.
FICHA TÉCNICA
Título original — Die Geschichte vom weinenden Kamel
Título inglês — The Story of the Weeping Camel
Título português — A História do Camelo que Chora
Ano — 2003
País — Alemanha – Mongólia
Duração — 93 min
Realizador — Byambasuren Davaa e Luigi Falorni
Argumento — Batbayar Davgadorj, Byambasuren Davaa e Luigi Falorni
Produção — Tobias Siebert
Fotografia — Luigi Falorni
Música — Marcel Leniz – Marc Riedinger – Choigiw Sangidorj
Edição — Anja Pohl
Figurino — Unorjargal Amgaabazar
Elenco — Janchiv Ayurzana – Chimed Ohin
SINOPSE
Uma família de nómadas assiste ao nascimento dos camelos. Um dos camelos tem um parto doloroso e após muito esforço dá à luz um pequeno camelo albino. Apesar dos esforços dos pastores, a cria recém-nascida é rejeitada pela mãe. Quando todas as esperanças parecem ter-se desvanecido, os nómadas mandam dois rapazes numa viagem através do deserto à procura de um músico, última hipótese de voltar a juntar a cria e a sua mãe. Quando o músico chega, executa um ritual extraordinário e o som do seu instrumento e o canto de uma mulher tocam o coração da mãe camelo.