SUBLIME MASOQUISMO — ‘Belle de Jour’ (1966)
— JOÃO MENDES FERREIRA —
“As trevas precisam dos olhos e da memória da luz”
Paul Valéry
Em 1971, no Cineclube de La Victorine, em Nice, François Truffaut afirmou: “Creio que Buñuel considera as pessoas imbecis, mas a vida divertida.” E, mais adiante: “O tratamento antipsicológico do argumento buñueliano funciona com base no princípio do banho escocês – alternância de notações favoráveis e desfavoráveis, positivas e negativas, lógicas e insensatas – e aplica-se tanto às situações quanto às personagens.” (1) Um jogo com e pelo contraditório, o absurdo e o irónico da condição humana, o pulsional, o violento, o erótico e o racional, jogo esse que encontra na expressão surrealista um modo de se mostrar, mais do que de dizer-se. Manoel de Oliveira (2), diz do autor: “No cinema dele há sempre uma transcendência. O surrealismo, nele, é uma fórmula que é muito favorável ao seu lado irreverente. Não é tanto uma fórmula estética, mas uma maneira de expressar o íntimo do ser humano – na sua perversidade.”
A estrutura narrativa de Belle de Jour – obra do período francês da filmografia do realizador – constitui uma encenação perversa num registo em irredutível plano duplo – real e imaginário – o qual é inexistente no romance homónimo de Joseph Kessel (1928) que inspirou o argumento do filme. Diz-nos Buñuel (3): “[este duplo plano] criei-o eu, porque foi o que me estimulou para filmar a história. No fim, o real e o imaginário fundem-se. Eu mesmo seria incapaz de vos dizer o que é real e o que é imaginário no filme. Para mim, são um só.”
Num plano simbólico, de que a causalidade cronológica não é tributária, Pierre, o marido, fica cego quando o teatro perverso da esposa/prostituta e dos seus clientes cessa – prescindindo, assim, do voyeur dessa reiterada ação. Na cena final, “desperto” pelo som ritmado da caleche, o mesmo com que o filme/sonho começa – o sensorial parcial que é a marca e o anúncio do traumático revivido –, Pierre levanta-se, sorridente, como se o excitante signo perverso prometesse recuperar a cena em que ele humilha e fustiga a mulher, fazendo-a ser violada pelos seus lacaios (seus representantes simbólicos). Neste sonho-emblema parece pré-determinar-se – paradoxalmente, a posteriori – o destino de Séverine enquanto belle de jour, e explicitar-se a sua obediência, nesse acting, a um desejo sadomasoquista do marido.
Na sua inteireza, o filme desenvolve uma estetização da posição perversa, pelo recurso não apenas à ação, à fala e à gestualidade das personagens, mas também à articulação destas com os aspetos cenográficos – luz, cores, sons, figurinos –, num convite do espectador à fetichização dos planos, produtos de um controlo acérrimo do olhar do realizador. A aproximação que Sergio Benvenuto (4) faz do conceito de sublime na perversão, ao conceito kantiano de sublime dinâmico – excitar um desprazer que agrada – encontra em Belle de Jour uma expressão superlativa: a repetição de um ato desagradável (ou a iterativa procura da dimensão abjeta na diversidade de atos a que Séverine ativamente se submete, os quais têm como símbolo mais extremo o cliente oriental e a sua misteriosa caixa) torna-se fonte de inexcedível prazer para a prostituta das 14h00 às 17h00 na casa de madame Anaïs, gozo inacessível à doméstica esposa – “Sublime quer dizer o ponto mais alto do que é baixo”, segundo Lacan (5).
Este jogo de espelhos, de sobreposições, de revelações e de zonas de escotoma constrange à interrogação: quem é o sujeito dos sonhos/fantasias de Séverine? A própria? Pierre? O realizador-sonhador do filme?
O primeiro filme que Buñuel se recorda de ter visto em criança impressionou-o muito: “via-se um paralítico num cadeirão e a sua mulher. A mulher matava-o. Em seguida, o fantasma do paralítico aparecia no cadeirão e a mulher gesticulava, aterrorizada.” (3) Renascerá esta experiência infantil seis décadas mais tarde no final de Belle de Jour, na forma de encenação da culpa de Séverine pelo castigo que inflige ao marido, paralisado pela ignorância, e da sua reparação através da restituição da visão e da mobilidade, num surreal e oniróide happy end? Não esqueçamos, no entanto, que “a culpa não é o preço pago por ser mau mas sim o preço pago pelo privilégio de continuar a ser mau.” (6) Não sendo um filme moral – pois não apresenta o masoquismo como penitência do Eu a sacrificar-se a um sadismo redentor, na linha de “Uma Criança é Batida, contribuição para o conhecimento da génese das perturbações sexuais” (1919), de S. Freud –, impõe-se a hipótese da sua conclusão (anti-)narrativa enquanto representação da repetição traumática, num mise-en-abyme da dramatização perversa, espécie de marca invisível do filme, cujos sucessivos níveis de enclausuramento se vão revelando à medida que nele mergulhamos.
Na novela de Kessel, Séverine recorda ter sido vítima de abuso sexual, tocada por um homem quando tinha oito anos, ao sair do seu quarto, a caminho do quarto da mãe. No filme, a cena surge como recordação ou fantasia, em breves imagens apenas, sem palavras, a sugerir a origem traumática da compulsão à repetição, no encontro com homens ativamente abusivos: o corruptor Housson; o delinquente Marcel, obcecado por Séverine, que dispara sobre Pierre e é mortalmente baleado pela polícia; o cliente oriental, que fala incessantemente, e de maneira arrelacional, numa língua estranha e ininteligível para ela, a lembrar a Confusão de Línguas entre os Adultos e a Criança (1933)com que Sándor Ferenczi resgatou e desenvolveu criativa e originalmente a teoria da sedução “do” Freud de 1896, contra a recusa e o desmentido “do” Freud “abjurado” de umas décadas depois.
Se, ao invés de prevalecer uma atribuição simbólica aos elementos narrativos, atendermos ao desenrolar do filme como uma projeção (onírica e cinematográfica) do relato de uma fantasia ou de um sonho – como numa sessão de psicanálise – surge a hipótese interpretativa do marido de Séverine como o orquestrador masoquista de um pacto implícito com a mulher, através do qual garante ser ele mesmo o maestro da própria passividade como marido traído, pacto inconsciente análogo aos contratos escritos, de domínio-submissão, que Leopold Sacher-Masoch firmava com a sua mulher Wanda. Teremos, assim, Pierre como o “argumentista velado” do seu papel de corno – uma espécie comum de “voyeur cego” –, como o “rapazinho no adulto” que inconscientemente se compraz a ser maître du jeu da sexualidade da mulher/mãe traidora, mulher que é apenas isco para homens marionetas nas mãos do traído (4). A “inocência” do marido é reassegurada pela intervenção daquele que consideraríamos o seu cúmplice corruptor, o amigo Husson, e a suposta revelação que este sadicamente lhe faz do segredo de Séverine (fazendo correr uma lágrima no seu rosto inerte), repõe a violência contida na relação emocionalmente árida entre Pierre e a mulher, de que a sujeição masoquista desta a homens sádicos é o reverso equivalente: “a relação simbiótica que se encontra no masoquismo, faz uso do sofrimento, da dor e da humilhação, não para obter prazer, mas como um representante simbólico, quer da inalcançável fusão com o objeto sexual primário, como da impossível separação do mesmo.” (7)
Podemos afirmar que a lógica buñueliana que preside à estrutura do filme é uma lógica psicanalítica, na medida em que se rege – parcialmente, todavia – por uma necessidade de ordem substitutiva, em que um objeto é apresentado no lugar de outro – como no sonho.
Adverte-nos o realizador, que se afirmava “ateu graças a Deus”: “Freud abriu uma janela maravilhosa para a interioridade do Homem, mas o freudismo tornou-se numa igreja que tem resposta para tudo.” (3)
Em 2006, no Festival Internacional de Cinema de São Francisco, que prestou homenagem a Buñuel, o seu amigo e colaborador próximo, co-argumentista de Belle de Jour e de cinco outros filmes do realizador, o francês Jean-Claude Carrière, em entrevista para a Slant Magazine (8), antes de uma projeção do filme, fala da aversão que o realizador tinha à análise da sua obra: “um psicanalista mexicano escreveu um livro chamado O Olho de Buñuel, explicando tudo o que ele fez, está a ver, este plano significa isto, e por aí fora. Um livro absolutamente estúpido. (…) Luis chamou-me à parte e disse: «este tipo escreveu um livro sobre o meu olho do cu». (…) Ele sabia, e eu concordo plenamente, que quando se tenta definir o trabalho, forçar uma compreensão da imagem, reduz-se o poder dessa imagem.”
Buñuel conta que, ainda jovem, matou um burro com um revólver para ver, depois, os abutres a comerem o cadáver. Tê-lo-á feito de verdade? Não importa: no cinema – como na vida, sabemo-lo – real e imaginário às vezes irmanam-se; e às vezes violentamente. É para essa violência fundamental, plasmada em inquietante beleza, que o cinema de Buñuel nos convoca. Violência de que cada um de nós se protege, maravilhado, abrigando-se no objeto cinematográfico que a contém: refugiamo-nos no covil da fera. Afinal, os realizadores de cinema (os que prestam, não os imbecis) são voyeurs divertidos, devorados por abutres gourmet: nós.
AUTOR
João Mendes Ferreira
Psicólogo clínico, membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Sándor Ferenczi Network (ISFN)
E-mail — jmendesferreira5@gmail.com
REFERÊNCIAS
1.Truffaut, F. (1975). Os Filmes da minha vida. Orfeu Negro. Lisboa: 2015.
2.Manoel de Oliveira, entrevista ao jornal Público, 08/09/2006.
3.Turrent, T. P.; la Colina, J. de (1993). Conversations avec Luis Buñuel. Petite bibliothèque des Cahiers du cinéma: 2008.
4. Benvenuto, S. (2016). What are Perversions? Sexuality, Ethics, Psychoanalysis. Karnac Books. London.
5.Lacan, J. (1975). The Seminar of Jacques Lacan XX: Encore. Karnac Books. London: 2004.
6.Stoller, R. J. (1979). Sexual Excitement. Dynamics of Erotic Life. Karnac Books. London: 1986.
7.Smirnoff, V. N. (1970), The Masochistic Contract in R. J. Stoller; ibidem.
8.Jean-Claude Carrière, entrevista a Fernando F. Croce: Jean-Claude Carrière on Working with Luis Buñuel in Slant Magazine, April 30, 2006 (online).
FICHA TÉCNICA
Título original — Belle de Jour
Título português — A Bela de Dia (PT) \ A Bela da Tarde (BR)
Países — França – Itália
Ano — 1966
Duração — 100 min
Direção — Luis Buñuel
Argumento — Luis Buñuel e Jean-Claude Carrière, a partir do romance homónimo de Joseph Kessel.
Produção — Henri Baum, Paris Film Production (Robert e Raymond Hakim) Five Film
Anotação — Suzanne Durrenberger
Fotografia — Sacha Vierny
Som — René Longuet
Montagem — Louisette Hautecoeur
Cenários — Robert Clavel
Guarda-roupa — Hélène Nourry
Maquilhagem — Janine Jarreau, Yves Saint Laurent
Elenco — Catherine Deneuve – Jean Sorel – Michel Piccoli – Geneviève Page – Francisco Rabal – Pierre Clementi – Françoise Fabian – Maria Latour – Francis Blanche – François Maistre – Macha Meril
SINOPSE
Séverine (Catherine Deneuve) é a bela e frígida esposa de um médico, Pierre (Jean Sorel). Em devaneios, imagina-se sadicamente submetida no contexto de diversos cenários perversos. O cínico libertino Husson (Michel Piccoli) dá a Séverine o endereço do bordel de Anaïs (Geneviève Page). Séverine levará uma vida dupla: de esposa decente e, nas tardes, de prostituta de luxo. No bordel conhece diversos homens com gostos particulares. Um dos seus clientes, o jovem criminoso Marcel (Pierre Clementi), desenvolve uma obsessão por ela, em resultado da qual dispara sobre Pierre, deixando-o paralisado e cego.