O SELVAGEM EM NÓS — Where the Wild Things Are (2009)

— SELENE BEVILÁQUA CHAVES AFONSO —

Where the wild things are, filme lançado em 2009, foi uma das adaptações do livro de mesmo nome do autor e ilustrador americano Maurice Sendak, editado em 1963. O livro foi aclamado pela crítica tanto pelo seu conteúdo, quanto pela ilustração. Foi utilizado em escolas e até lido para crianças convidadas pelo então presidente Barack Obama durante os festejos de Páscoa no Salão Oval da Casa Branca.

O que faria um livro tornar-se tão popular, senão o fato de tocar questões profundas dos seus leitores? O que de comum às crianças e aos adultos mobilizaria tanto senão os aspectos mais profundos da nossa vida emocional, seus mistérios, desenvolvimentos e retrocessos?

O filme mostra numa camada mais superficial uma família de classe média. A mãe, carinhosa e adequada tenta equilibrar os cuidados à família, sua atividade laboral e a renovação de sua vida amorosa; a filha adolescente voltada para amigos e relações afetivas fora do núcleo familiar; o pai já não vive ali e nesse contexto está Max, um pré-adolescente que protagoniza conflitos comuns com eles. Ciúmes, rivalidade, sentimento de exclusão, solidão, raiva, medo. Porém, uma lente psicanalítica baseada na teoria kleiniana permite vermos camadas do inconsciente.

A caminho da adolescência, Max vê destruído, não apenas pelos amigos da irmã, mas também pelas transformações biopsicossociais, o iglu onde a latência mantinha congelados seus impulsos e fantasias primitivas. Ele não é mais como o sol no centro do universo delas. Trabalho, estudo, amigos e namorados são outros interesses da mãe e irmã. O pai segue representado por essas triangulações na cena familiar.

Num desses momentos, ao sentir-se excluído e num acesso de raiva ataca o quarto da irmã. A mãe o ajuda a reparar o dano concreto e tenta ser continente. Pede a Max que invente uma história, que como um sonho, revela os ataques orais e a consequente retaliação temida por Max. Demonstrando que a reparação no mundo real contribui para uma redução da ansiedade, mas não é suficiente para afastar as fantasias inconscientes que mobilizam o núcleo edípico.

Na sala de aula, o tema sobre o sol no centro da nossa galáxia, seus aspectos positivos e potencialmente devastadores, chama a atenção do garoto. O astro-rei pode explodir e exterminar toda a vida à sua volta, assim como a imaturidade emocional infantil não distingue fantasia de realidade, Max supõe pôr em risco sua constelação familiar com seus impulsos destrutivos.

No seu quarto, a cabana repleta de brinquedos e do faz-de-conta infantil parecem não ser mais suficiente para seus interesses. Após ver a mãe com o namorado, uma nova crise de ciúmes provoca ira conduzindo Max para seu mundo interno, numa viagem pelo mar tempestuoso de impulsos primitivos.

A ilha é habitada por monstros que representa a divisão de aspectos sentidos como bons e maus sob a ação da posição esquizoparanóide, suas ansiedades e defesas. Lá está Carol, autocentrado, impulsivo, criativo, ressentido e raivoso, sente-se sozinho e abandonado por KW; o bode Alexander, carente, reflexivo; Judith rancorosa, amarga, não se sente amada; Ira, ao contrário do nome, dócil e parceiro e Douglas, capaz de dar seu “braço preferido” pelo amigo Carol.

Carol está furioso por que KW foi embora. Ao presenciar os ataques orais, uretrais e anais destrutivos de Carol, Max identifica-se e junta-se a ele nas investidas agressivas contra o ambiente que o cerca. Perseguido e questionado pelos outros monstros na chegada, Max corre o risco de ser devorado. Então, evoca poderes que chamou de antigos, autoproclamando-se rei e prometendo proteger seus súditos contra a tristeza (a fragilidade e a dependência humanas).

Busca na omnipotência um bálsamo, promete que manterá todos juntos e felizes e trará de volta KW. Mas KW representa aquela parte de si mais propensa a crescer e que duvida dos poderes do Max. Aceitar Bob e Terry, a dupla de corujas, símbolos da sabedoria, com quem KW tem uma relação mais estreita que os demais monstros ainda é um desafio para Carol, mas aponta um caminho para a integração dos processos da posição depressiva em direção ao amadurecimento emocional.

Rei Max decreta um estado de bagunça, liberdade total, onde busca a satisfação de todos os desejos e a evitação da dor. As relações pouco levam em conta o outro.

Diante da aproximação da posição depressiva, Max e Carol recuam novamente para o estado esquizoparanóide e para uma divisão entre os bons e os vilões. Mais uma proposta de brincar de guerra colocando os monstros em dois grupos. Há prazer, mas também feridos e frustração. E quando Carol se recusa a pisar na cabeça de KW durante essa brincadeira, parece se aproximar de alguma consideração pelo outro.

Colocar em prática todas as pulsões em especial as destrutivas, traz para além da realização dos desejos, a culpa. Todos se sentem maus e não estão felizes. KW vai embora novamente. Os monstros começam a duvidar do rei. Os recursos da posição esquizoparanóide não foram suficientes e sua promessa de “felicidade” fracassa.

Triste, mas não raivoso, Max escuta do bode Alexander: “Você não é rei de verdade, é apenas um menino, não é?”. Max: “Sim, mas por hora, não deixe Carol saber disso”.

Quando seus poderes perdem força, suas fantasias onipotentes também perdem e Max decide voltar para casa. Na despedida da ilha, deseja aos seus amigos, uma mãe. O cão, apesar de enigmático e assustador, fala com voz doce: “diga que somos bons”. Um até breve de Judith lembra que o pêndulo entre as posições, esquizoparanóide e depressiva é contínuo.

Os uivos de despedida sugerem que os sentimentos selvagens sempre habitarão nosso mundo interno em maior ou menor grau, a depender da tessitura de fatores internos e externos, do balanço de forças entre as pulsões de vida e de morte, das repetidas experiências relacionais e das constantes flutuações entre projeção e introjeção.

Ao chegar em casa, Max é recebido pela mãe, apreensiva e amorosa, com um bom prato de comida. E mesmo ao vê-la exausta, dormir sobre a mesa enquanto conversa com ele, dá um leve sorriso de compreensão. Uma integração dos aspectos humanos e não idealizados da mãe permite que ele não se sinta abandonado naquela hora. Sente-se querido e alimentado…

Ao menos, até a próxima viagem à ilha onde habitam os monstros …

AUTORA
Selene Beviláqua Chaves Afonso
Membro associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e da International Psychoanalytical Association (IPA) \ Membro associado/extra-quorum da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) \ Mestre e doutora em Ciências da Saúde pela Fundação Osvaldo Cruz – Fiocruz.
E-mail — selene.zero@gmail.com

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Where the wild things are
Título português — Onde vivem os monstros (BR) \ O Sítio das Coisas Selvagens (PT)
Ano — 2009
Duração — 101 min
País — E.U.A.
Direção — Spike Jonze
Roteiro — Spike Jonze, Dave Eggers e Maurice Sendak
Produção — K.K Barrett
Fotografia — Lance Acord
Música — Carter Burwell e Karen O
Elenco — Max Records – Catherine Keener – Mark Ruffalo – Pepita Emmerichs

SINOPSE
Max, um menino que após aborrecer-se com a irmã e a mãe, tem um acesso de raiva e foge de casa e, também mentalmente, para um lugar onde se encontra com seres/impulsos selvagens que espelham seus conflituosos sentimentos às portas da adolescência.