SORTE OU INFORTÚNIO — A Fortunate Man (2018)

— MARIA APARECIDA (LECY) CABRAL —
O filme “Um homem de sorte” é um drama dinamarquês de época. É baseado no livro Lykke Per (Afortunado Per), de Henrick Pontoppidan, autor que foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1917. É um dos livros mais conhecidos da Dinamarca e que inspirou este filme.
Foi o olhar da câmera do diretor Billie August nas cenas do filme que despertou meu interesse em compartilhar as minhas ideias psicanalíticas. O diretor afirma que sua maior recompensa é quando ele escreve uma cena que se torna posteriormente vívida com os atores durante a situação de filmagem. É essa interação com os atores em cena que ele define como momentos mágicos. Cenas que, em todo o seu conjunto, tornam esse filme único em seu desenvolvimento. O clima captado pelo olhar da câmera é um diferencial do filme.
“Um homem de sorte” é a história do jovem Per, que vive no campo, oriundo de uma família cristã protestante, de costumes rígidos nos modos de ver e de viver a vida, contrária às transformações que então se consolidavam naquela sociedade. Para tal, abandona sua casa paterna, no interior de Copenhagen, donde parte em busca de realizar seus sonhos e ter reconhecimento.
A cena da partida de Per nos põe em contato com o drama psicológico, que perpassará ao longo de sua trajetória. Ao sair, seu pai, com o qual ele não tinha proximidade e por quem não sentia afeto, oferece-lhe um antigo relógio de algibeira, que havia sido dado pelo seu avô, no dia em que seu pai, como ele, saiu de casa. Per recusa mas o pai insiste e lhe diz: “Dou-lhe esse presente na esperança que abra sua mente e abrande seu coração e tome cuidado para que não termine amaldiçoado pelo Senhor”. Per, mesmo assim, recusa violentamente o presente. Atordoado e consternado pela agressão, deixa para trás a relva fresca, a brisa do mar encantadora de Jutland e toda a sua história.
Seu pai, um clérigo rígido e austero, não entende essa ambição do filho e a sua curiosidade em aprofundar mais a matemática e a engenharia.
Não aceita que a ciência e o progresso material, assim como a religião, são caminhos diferentes que contribuem para construção de um novo mundo. São caminhos diferentes que se podem percorrer, ambos contendo a possibilidade de construção de um novo mundo. Ser um “homem de sorte” não adianta muito para esse jovem que carregará nas costas esse mau presságio verbalizado pelo pai quando o amaldiçoa…
Per, num primeiro momento, mais em sua mente do que no papel, desenvolve, com sua imaginação, um projeto para a criação de canais que atravessariam todo o seu país, assim como a elaboração de um sistema de moinhos para a captação da energia do vento. Estudo para o uso de energia hidráulica e eólica como opção ao alto custo do carvão.
Foi aceito para estudar engenharia. Embora ainda aprendiz, se comporta de forma arrogante, como quem sabe demais. Conhece Ivan Salomon, de uma família de judeus milionários, influentes e interessados em investir em novos projetos.
No primeiro encontro na casa de Ivan Salomon, conhece Eybert, tio de Ivan, personagem instigante que percebe a ambição e entusiasmo de Per.
O olhar apurado e sagaz de Eybert, provoca inquietações e interesse na cena em que faz um comentário oportuno, após dizer que seu sobrinho já havia comentado a respeito dele: “Um homem afortunado não é uma característica muito boa. A fortuna, favorece aos tolos”. Essa afirmação deixa no ar uma questão que irá acompanhar Per em toda sua trajetória. Ainda assim é bem aceito no lar da família Salomon.
Na continuidade dos seus estudos, adquire confiança e consegue ver o seu projeto ser avaliado pelo Engenheiro Geral, chance que o entusiasmou pela possibilidade de que seu projeto fosse aceito. Porém, Per não admite que seu trabalho, para ser aprovado, tivesse que ter assinatura e participação do Engenheiro Geral, e reage violentamente!
Sua reação agressiva não é bem aceita, sendo criticada pelos investidores e pelo clã da família Solomon.
Age de forma arrogante diante da realidade e precisa mostrar que é um herói. Cria mal-estar e mostra sua fragilidade e inexperiência na cena em que confronta e questiona o Engenheiro Geral, a autoridade máxima na cidade para aceitação do seu projeto. Rebela-se e perde a cabeça. Defende-se com altivez e reage, por defesa, como um animal acuado, para mostrar sua potência, a fim de inibir o estranho que o ameaça.
Voltado para os cálculos e construções que faz em sua mente, as relações são colocadas em segundo plano e com os outros.
Se reconhece como jovem inteligente de ideias progressistas. Mas transparece sua inexperiência e arrogância, sempre que entra em contato com os seus medos e faltas, com a sua vulnerabilidade. A imagem do pai e dos problemas familiares que Per carrega constituem entraves para prosseguir. A meu ver, referem-se a conflitos em seu mundo interior e imaturidade emocional, dificultando seu reconhecimento do outro.
Esses traços de formação psíquica fazem com que desperdice as chances da vida fluir e poder dar certo. Carrega de suas origens muitas dores e mágoas que permanecem insuperáveis; demonstra falhas básicas pelas vivências e valores trazidos da infância, que o fazem sentir-se desamparado. Como tais valores influenciaram a constituição do adulto Per?
Os conflitos do mundo interno intensificam-se com a morte da mãe. O noivado com Jakobe, a filha judia e rica de Salomon, não é aceito pelas rígidas regras religiosas da família de Per. Com o fracasso de seus objetivos, retorna às suas raízes para o cerimonial de despedida da mãe em Jutland.
No seu retorno, encontra o clérigo vizinho das terras do pai e, em uma conversa amigável, abre-se e expõe seus temores, angústias, conflitos e pecados. Seus fantasmas… E, perdoado pelo clérigo, após essa conversa, resolve ficar e casar-se com a filha dele.
Retorna a Copenhague para desfazer seu noivado com Jakobe, que o aguardava ansiosamente para comunicar a notícia de sua gravidez. O pobre “homem de sorte”, é solapado pelo seu mal jeito e despreparo emocional, desconhece o outro, a relação afetiva e a abertura para o amor.
Jakobe, é a personagem mais lúcida e preparada. Desde o início do filme, mostra seu interesse pelo outro, pelas relações, distinguindo o que espera e quer construir para sua vida. Apesar de ser considerada, naquela época, com idade avançada para se casar, recusa o casamento com o viúvo bem abonado com duas filhas e opta por não se casar, apesar da insistência. Ela pode discriminar e dizer que não o ama.
Per, por sua vez, constrói uma linda família com três filhos, mas não consegue desenvolver seus projetos. Continua em seu limitado modo de ser, onde seus sonhos e criações não prosperam. Sem abertura para o novo, suas novas descobertas nunca saem do papel. Sem preparo para lutar pela vida, pelos seus filhos e esposa, se frustra mais uma vez ao retornar àquela vida simples. Realiza, ao contrário, o sonho de seus pais em formar família, mostrando a força da transmissão psíquica da transgeracionalidade. Volta, para viver o que os pais gostariam, mas é um pobre homem com pouca sorte.
Jakobe, por outro lado, opta por não se casar, e pede aos pais sua herança para ajudar em um projeto com as crianças. Com sua dedicação, constrói um orfanato, um lar para crianças abandonadas. Observou ao longo da vida como uma infância difícil marca uma pessoa. Refere-se, provavelmente, à sua experiência com Per, com quem manteve uma relação à distância ao longo desse tempo.
Seu objetivo no orfanato que construiu é que as crianças aprendam a amar o próximo para se tornarem pessoas. Quer, pouco a pouco, transformar seu orfanato num refúgio, um santuário. Jakobe é idealista, sonha novas oportunidades, tem objetivos e enxerga o outro, tentando transformar essa realidade tão dura e crua. Quer melhorar a qualidade da vida emocional dessas crianças para que possam ter recursos internos para sobreviver e ter uma qualidade de vida melhor.
As crianças carentes, agora, têm um lugar para abrigá-las dos maus-tratos na rua e têm condições mais humanas e dignas de viver; sua esperança é quebrar essa herança social.
Recordo o início do filme, quando Jakobe traz o comentário que sua família fez a respeito de Per pela forma de comportar-se ao abusar da bebida, ao qual se contrapõe dizendo: “É triste ver como ser pobre deixa terríveis marcas numa pessoa.” Provavelmente, Jakobe, com sua perspicácia e sensibilidade, refere-se também ao mundo interno.
Grata pela família que tem e que lhe ofereceu a oportunidade de escolher seu destino e buscar novos caminhos com amor, é uma mulher de sorte e coração aberto.
Até o momento final da vida de Per, quando, em seu confinamento, escreve para que ela vá visitá-lo, oferece seu carinho e amor.
Per a recebe no seu afastamento, e um lindo diálogo ocorre entre eles. Per faz sua reparação e diz que finalmente, em sua solidão, tornou-se consciente de quem era, que foi um ser humano pela metade e que agora, próximo da morte, sente-se libertado. Oferece seus projetos como modelo para a escola, como uma inspiração para as crianças. Sendo este o motivo que o levou a escrever e pedir que ela viesse como último desejo. Oferece-lhe doze mil e seiscentas coroas, quantia que juntou nos últimos anos para seu projeto, o orfanato.
Talvez esse dinheiro represente o que havia ganho dos investidores e da família Salomon para seus projetos, num movimento de reparação e gratidão. Per retirou-se da família e isolou-se, dizendo que certas pessoas são atraídas para o desastre e só encontram liberdade na falta de esperança e solidão. Bastante triste esse desamparo, despreparo e desilusão para buscar novos caminhos na vida.
O diálogo final que ocorre entre Jakobe e Per é delicado e profundo. Jakobe demonstra seu carinho e sensibilidade às crianças que cuida e tanto quer bem. São todas elas um pouquinho de Per, crianças carentes que não tiveram oportunidade de serem bem cuidadas, olhadas e amadas.
Antes de isolar-se no refúgio, deixou o relógio que recusou do pai no túmulo dele. O relógio que marcou sua vida e seus passos, o relógio que simboliza a herança, a passagem que transmite valores de família, e fora rejeitado talvez como um sinal de não aceitação da herança transmitida.
Em sua solidão e pouca vida emocional sente-se libertado.
Na última cena do filme, a vastidão do mar.
Per, exaurido, caminha na relva para apreciar o mar…
Um momento reflexivo!
A luz do entardecer que ilumina esta cena final é sóbria, diferente da luz que iluminava a relva e o mar no início do filme.
Um mundo com vida e possibilidades!
Uma frase para reflexão: “Você tem o futuro aos seus pés”.
Eu diria: se tiver espaço interno para aceitar seus passos e caminhar.
O que é sorte? É poder criar condições para a realização de um sonho ou projeto, é se preparar para sonhar e não ter medo do novo.
AUTORA
Maria Aparecida (Lecy) Cabral
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da International Psychoanalytical Association (IPA) \ Coeditora da revista IDE
E-mail — cabral-lecy@uol.com.br
FICHA TÉCNICA
Título original — Lykke-Per
Título inglês — A Fortunate Man
Título português — Um Homem de Sorte
Ano — 2018
País — Dinamarca
Duração — 162 min
Direção — Billie August
Argumento — Billie August e Anders August, adaptação do romance Lucky Per de Henrik Pontoppidan
Produção — Netflix
Fotografia — Dirk Bruel
Música — Lorenz Dangel
Elenco — Esben Smed – Katrine Greis-Rosenthal – Benjamin Kitter, – Ole Lemmeke – Julie Christiansen
SINOPSE
A história é baseada no romance “Lykke-Per”, de Henrik Pontoppidan, um laureado com o Nobel de Literatura em 1917 e publicado inicialmente entre 1898 e 1904. Um jovem talentoso engenheiro abandona a vida de interior numa pequena fazenda. Deixa a casa de seu pai, um pastor protestante austero e com o qual não tinha nenhuma proximidade e afeto. Parte para a capital, Copenhague, para realizar seus sonhos e ter a chance de apresentar seu projeto para desenvolver uma represa e criação de energia.