SENTIR OS SENTIMENTOS — Under the Skin (2013)

— ANA BELCHIOR MELÍCIAS —
Não tem nome, nem casa, nem relações, não sente fome, sono, frio ou dor, não (re)conhece o sofrimento ou o prazer humanos. Não tem nada a não ser um corpo…
Glazer mergulha-nos na falta de ligação emocional transversal à personagem infra/proto-humana, uma alien-cibernética, “turista sexual intergaláctica visitando a terra”(2). Decidiu fazer um filme acerca de um alien e mantê-lo alien até ao fim: “Ela é mais humana no fim, mas tão alien como no começo…” (3).
Estaremos perante uma perspetiva alien do mundo humano, enquanto ela, alien, vai tentando aceder a uma perspetiva humanizada?
Sutis apontamentos de ligação crescente à emoção vão sendo tecidos: a lágrima na troca inicial dos corpos; o bebé a chorar no carro no trânsito; o sangue no espinho da rosa; o homem-deformado que é poupado; o atordoamento da queda na rua; a tentativa de comer/incorporar; o corpo sem continente-vagina; o tamborilar os dedos ao ritmo da música…
Sobressai no filme a descoberta, a apropriação e o limiar de humanização do corpo, originário do funcionamento mental, apresentando-se paradoxais interfaces: o ego-corporal como ponto de partida; a pele nas suas dimensões psíquica e somática, membrana delimitadora e, simultaneamente, superfície tridimensionalizável de trocas e porosidades; a importância do corpo materno/outro; o auto-engendramento e a alteridade; a interdependência e a humanização.
O filme, parece ele próprio uma pele: ora fronteira impermeável entre o fora e o dentro, ora lugar de inquietante porosidade afetiva. Sentimos à flor da pele, em identificação projetiva, o enigmático interior (conflito estético), buscando em vão sentidos para a vivência a que somos submergidos, tal qual os homens-presas.
O ambiente é noire. O ritmo é sinistro. A experiência é sensorial e emocional entre o corpo dos personagens e o nosso próprio corpo, além de qualquer racionalização. Apenas perplexidade e suspensão.
A linguagem corporal, desperta reações viscerais de medo, espanto, horror e terror. O estranhamento contrapõe a belíssima Scarlett Johansson e a misteriosa personagem. A nossa mente desentendida e desassossegada terá de manter-se em capacidade negativa.
O cenário de abertura é um sistema planetário, localização genérica de um espaço infinito, cena primitiva remetendo ao genesis. Escutamos vocalizações, depois sílabas que se juntam e formam a primeira palavra — “feel”…
Sentir, onde tudo começa. No caminho da humanização, como se dará a complexa construção do aparelho de ‘sentir os sentimentos’, parafraseando o famoso ‘pensar os pensamentos’ de Bion?
Surge então, em grande plano, o olho apenas como orifício funcional por onde entra a informação. Mas permanecemos desinformados, num estado mental unidimensional, de não-integração, buscando um sentido que constantemente nos escapa…
Saídos do palco planetário, uma linha-estrada sinuosa é desenhada por um facho de luz de uma motocicleta, num ambiente de penumbra, fronteiriço.
E Scarlett passa a dirigir uma van. Entra num shopping, onde tem o seu ‘contato de 1º grau’ com humanos. Um batom e um casaco de pele, aludindo ao pulsional-primitivo-sensorial, passam a “vesti-la” para as suas incursões pela cidade de Glasgow, onde uma massa humana “atropela” a van, submergindo-a em “outros” que não reconhece internamente.
Também ela submergirá homens, no seu lago-lado negro, predadora insaciável numa coreografia mortífera-canibalísitica.
Sobre um fundo negro absoluto, caminha de costas desnudando-se. Os homens seguem-na, despindo a roupa e “vestindo-se” de desejo. Ela prossegue à superfície e eles vão submergindo, progressivamente, num líquido negro. Orgasmo do avesso, encenado anti-relacionalmente numa teia negra devoradora? Desejo masculino punido e angústia de castração encenada? Hipnotizados por uma cena primitiva, não de vida, mas de morte?
Observa à distância os comportamentos das pessoas na rua. A intensidade emocional chega ao auge na cena angustiante da família na praia deserta. O desamparo do bebé que ela observa imperturbada, cola-se ao nosso desamparo originário.
Mais tarde, ouve o choro de um bebé no carro ao lado. Mantém-se imperturbável e inexpressiva, mas olha. Estará a construir-se a frágil ponte para um possível re-conhecimento? Haverá em statu nascendi uma qualquer porosidade psíquica, uma proto-permeabilidade aos sinais afetivos?
A esboçada humanização dá-se quase imperceptivelmente. Scarlett começa a (des)organizar-se — sentir desorganiza/organiza.
O striptease da dança macabra-ritualística é re-encenado, mas temos agora acesso ao que se passa na escuridão inacessível da opacidade do debaixo da pele. Deparamos com o oco, a vacuidade. O homem flutua numa espécie de líquido amniótico mortífero, pairando como feto e fazendo jus à associação womb-tomb (Shakespeare). Outro homem ali vagueia… Tocam-se, aludindo talvez ao ato de vida e criação do famoso afresco de Michelangelo na Capela Sistina. Aqui será, nos antípodas, um toque antirelacional, até restar apenas a pele, continente sem conteúdo.
Nessa usina canibalística, a pele como fronteira e lugar de contato com o outro, é clivada, separada de todos os órgãos que lhe permitem sentir, processar, relacionar. Descarnadas, as vísceras são transportadas num tabuleiro rolante, mergulhando-nos em angústias autísticas e psicóticas de desmembramento, devoração, liquefação, fragmentação, esvaziamento. Qual será o objetivo da sua caça? Haverá outra galáxia em privação? Ou des-carnar e vampirizar, apropriando-se do interior do outro, alimentará um self desvitalizado, voraz e por humanizar?
Desapercebidamente ela está mais observadora do que a rodeia. O aparelho de sentir começa a reverberar, como música já presente mas ainda inaudível, como o recém-nascido emergindo do universo uterino e imergindo na área da fusão e ilusão primária.
Ao expor-se — ver-e-ser-vista —, andando pelas ruas da cidade despida da van-segunda-pele, o contato mais pele a pele com os outros, conduz à ruptura da barreira de contato, arrastando-a atónita para um turbilhão de luzes e barulhos não representáveis.
Leva um homem deformado para o lago negro. Estará este homem forçadamente alienado da sua humanidade, pela sua grave deformação, ou começará ela a ver-se alienada de uma possível humanização? Não será a dimensão de interioridade e intersubjetividade uma estranheza primordial, um alien que nos habita desde sempre? Ficaríamos alienados na visão superficial de um corpo monádico, pois somente pela relação-toque e pela imaginação-sonho teremos acesso ao interior do outro, construindo um corpo diádico.
Ao sair da casa-lago-negro, vê a sua imagem num espelho. Tem uma epifania, um insight da sua subjetividade, cuja bela cena termina com uma mosca aprisionada contra uma porta de vidro. Metamorfose kafkaniana invertida, dará conta do seu aprisionamento desumanizado, num corpo humano?
Ao olhar-se (gaze integrador), desponta o sentir-pensar, o turning point do filme. Ser espelhado (rosto e rêverie materna) é o alicerce da construção do psiquismo e da humanização.
Mergulha num redemoinho e “fica em branco”, numa profunda sensação de I ness (6), de irrealidade, de não existência. Do lago/buraco negro/sem sentido, em modo claustrofóbico, uni e bidimensional, passa para o branco/desconhecido/vazio, o desamparo, da paisagem agorafóbica-pluridimensional. Terá deixado de ‘parecer’ humana para desejar ‘ser’ humana?
No seu torpor, é acolhida empaticamente e novamente tem um ‘contato de 1º grau’, num espelho, onde acede não apenas ao seu rosto (parcial), mas agora à imagem do seu corpo nu e totalizado.
“O corpo é considerado o lugar onde encontramos o outro, onde o significado de semelhança e diferença, de dependência e separação precisa de ser negociado” (5).
Na volta de um passeio, abre-se a uma relação sexual, cuja corrente terna (pré-genital) ela aceita, sem conseguir dar continuidade à corrente sensual (genital). Assusta-se e investiga os seus genitais surpreendida. Que desconhecido é esse que Freud teve a coragem de des-cobrir? Momento de rasgão em toda a humanização: a necessidade de construção de uma psico-sexualidade não ditada instintivamente, mas pulsionalizada, ou seja, exigindo ao psiquismo a complexa tarefa de organizá-la através da relação.
Terá descoberto a sua impenetrabilidade, a sua falta de interioridade? Que haverá under the skin?
Perdida na Natureza, ‘abriga-se’ numa floresta e perscruta os sons da chuva e do vento. Está cansada, amedrontada, vulnerável e, portanto, mais humanizada. Adormece pela primeira vez, permitindo-se essa micro-morte do sono reparador contra a anterior hiper-vigilância e hiper-concretude. E sonha, fazendo a ponte fundamental entre os dois mundos.
De predadora passa a presa, de perseguidora a perseguida. Foge e esconde-se. Sente, plenamente, mas somente o terror-sem-nome do desamparo. No reverso do sutil ritual grotesco coreografado “ao negro”, onde o par não chegava sequer a tocar-se, a luta física crua e cruel de uma violação ressalta a violência pulsional e a vulnerabilidade feminina. Ela ‘não’ quer, ‘não’ deseja — sinal da nascente subjetividade? — o que o outro deseja, parecendo alcançar aqui os primórdios da alteridade, o corpo como fronteira.
Na luta, o ‘eu-pele’ rasga-se, denunciando a falta de coesão do seu funcionamento infra-humano. Começa a nevar. O striptease agora ‘em branco’, será da sua pele humanoide, a segunda pele, pseudo-contentora do seu verdadeiro self-alienígena. Uma pele somática e não psíquica. Uma membrana e não um ‘envelope psíquico’.
Despe por fim o seu rosto humano, olha-o e pestaneja. O abrir e fechar de olhos sincopado, tal como a lágrima de despedida do seu corpo no início, remete-nos aos afetos que ligam vida-morte.
Confirma-se a insuportabilidade do desconhecido, da diferença, do estrangeiro, do outro. Há que ‘tocar fogo’ e destruir o “estranho eu” (1), o alien que todos habita…
A humanização através da emoção, a construção de um ‘aparelho para pensar os pensamentos’, só será realizável através de um ‘aparelho para sentir os sentimentos’.
E o corpo é a via regia dos afetos humanizadores e “o testemunho vivo da nossa interdependência, de que não podemos nascer de nós mesmos” (4).
AUTORA
Ana Belchior Melícias
Psicanalista da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Analista de Crianças e Adolescentes \ Docente do Instituto de Psicanálise \ Formadora do Método Bick
E-mail — mail@anamelicias.com
REFERÊNCIAS
Baseado em: Melícias, A. B.; Cabral, L., & Frayze-Pereira, J.A. (2016). Painel-Filme Under the Skin – corpo (des)humanizado, apresentado no 31º Congresso Latino-Americano de Psicanálise: FEPAL, Cartagena, Colômbia. / Baseado em: Melícias, A.B., Cabral, L., & Frayze-Pereira, J.A. (2018). Três aproximações a um objeto cultural: o filme Under the Skin. Revista Portuguesa de Psicanálise (RPP) – Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP), 38[2]:54-65.
1.Almeida, M. C. P. (2017). Estranho eu. Trieb – Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Edição Especial I Congresso de Psicanálise de Língua Portuguesa: «Violência, Memória, Identidade», 59–64.
2.Ebert, R. (2014) “Under the Skin Review”. RogerEbert.com, publicado em 4.04.2014. Disponível em: http://www.rogerebert.com/reviews/under-the-skin-2014
3.Glazer, J & Cox, D. (2014). Jonathan Glazer talks to Film4 Channel Editor David Cox – 18 de março de 2014 (uploaded by Film4): https://www.youtube.com/watch?v=hZUvIfXKVVc)
4.Lemma. A. (2014). Minding the body: The body in psychoanalysis and beyond. Londres: Routledge.
5.Suchet, M. (2011). “Book review by Melanie Suchet of Under the Skin: A psychoanalytic study of body modification”. Division 39. Book Reviews. American Psychological Association. Disponível em: http://www.apadivisions.org/division-39/publications/review/index.aspx
6.Tustin, F. (1981). “”I”-ness: the emergence of the self. Winnicott Studies”. The Journal of the Squiggle Foundation: A celebration of the life and work of Frances Tustin, 4. 1989.
FICHA TÉCNICA
Título original — Under the Skin
Título português — Debaixo da Pele (PT) / Sob a Pele (BR)
Ano — 2013
Países — Reino Unido – E.U.A. – Suíça
Duração — 108 min
Realizador — Jonathan Glazer
Argumento — Walter Campbell e Jonathan Glazer, baseado no livro Under the Skin de Michel Faber
Produção — James Wilson e Nick Wechsler
Fotografia — Daniel Landin
Edição — Paul Watts
Música — Mica Levi
Elenco — Scarlett Johansson – Jeremy McWilliams (motociclista) – Adam Pearson (com neurofibromatose) – personagens não atores: Antonia Campbell-Hughes – Paul Brannigan – Krystof Hádek – Michael Moreland – Jessica Mance – Scott Dymond – Steve Keys
SINOPSE
Uma alienígena (Scarlett Johansson) chega à Terra num corpo (des)humanizado. A correlata protomente, age/atua fantasias inconscientes primárias e violentas. Ao deparar-se num espelho com a imagem do seu próprio rosto, evolui então para as primeiras trocas e uma inesperada porção de humanidade, começa a instalar-se. Sentir (corpo) e pensar (mente) estão indelevelmente interconectados. Mas sabemos que essas aproximações, expõem a falha continente de uma interioridade por construir, só possível através da rêverie.