VERDADE, ALIMENTO PARA A ALMA — Sweet Dreams (2016)

— VALY GIORDANO — 

Acabara de assistir ao filme Belos Sonhos e confesso que um bom tempo permaneci em silêncio, porém o barulho interno era imenso. Por várias vezes, me perguntei: Como pode algo tão distante no tempo ter tanta força? O passado construir o futuro?

No filme, Bellocchio deixa claro que a perda de sua mãe, sofrida por Massimo aos 9 anos, trouxe consequências negativas na vida adulta.

Não posso deixar de mencionar que o filme baseado em uma história verídica, talvez por isso, a riqueza apresentada seja imensa. Riqueza apresentada pelos sintomas causados pela perda precoce de sua mãe por suicídio.

Dentre os vários fatores mostrados com muita clareza no filme: Perdas, Depressão, Negação, Defesa e outros, resolvi propositadamente falar sobre PERDAS, por ser o desencadeante dos sintomas sofridos por Massimo, após a morte de sua mãe, por quase 30 anos.

Ao enfocar a vida do ser humano sob um ângulo histórico evolutivo, podemos vê-la como uma sucessão de grandes e pequenas perdas. Assim, viver uma perda faz parte do cotidiano. Porém, perder é sempre algo penoso e esta dor que acompanha a Perda é o Luto, processo que é longo e lento, cujo final não se prediz. 

Freud buscou incansavelmente conhecer a mente humana. Em Luto e Melancolia (1) diz: “A pessoa está cônscio da perda que deu origem a melancolia, mas apenas no sentido que sabe quem  perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. “

Massimo sempre esteve cônscio de quem perdeu, sua mãe, mas não o que perdeu com essa perda.

De fato, o filme nos mostra como era a relação de Massimo com sua mãe antes da descoberta por ela de um câncer, cena em que ele dança feliz ao seu lado.

Após o conhecimento dessa terrível doença, ela passa a sofrer de uma visível Depressão, que Bellocchio nos mostra na cena em que estão andando de ônibus e a mãe com olhar distante não desce no ponto final. Mesmo Massimo pontuando que deveriam descer, ela continua sem responder, olhando para o nada.

Green nos dá um conhecimento precioso através do texto “A Mãe Morta” (2) em seu livro Narcisismo de Vida e de Morte, onde fala da falta de interesse da figura materna em relação à criança, se traduz, mais tarde, na sensação da perda de sentido, apatia e identificação inconsciente com o luto.

Significativa a cena que acontece antes do suicídio. A mãe de Massimo entra em seu quarto, carinhosamente o cobre e sussurra em seu ouvido: Fai bei Sogni (tenha belos sonhos) e se atira por uma das janelas do apartamento. Neste exato momento, Massimo acorda com o estrondo e seu pai junto com outras pessoas, não permitem que ele veja o que aconteceu.

Sentindo-se só, totalmente desamparado, ele apela a uma heroína televisiva, a feiticeira Belfagor, de quem sua mãe gostava muito e promete ao fantasma que fará tudo o que ele quiser, desde que não o desampare. Essa fantasia por ele criada, lhe permite defender-se não só da perda materna como da frieza emocional do seu pai. 

Belfagor – o fantasma do Louvre

Sabemos que Belfagor foi uma defesa encontrada imediatamente frente a tanta dor. Sabemos também que as defesas são boas no momento da dor, porém, se permanecerem, trarão consequências ruinosas. Como por exemplo a necessidade de mentir para as pessoas dizendo que iria passar o Natal onde sua mãe reside, em Nova York.

Bion (3) evidenciou o prejuízo que a mentira causa para o mentiroso, deixando claro que: “o crescimento mental saudável depende da verdade tanto quanto o organismo depende de alimento”. 

Nesse quesito, o filme mostra a falta de sensibilidade do pai, pois querendo protegê-lo da dor da perda, acaba por prejudicá-lo imensamente escondendo a verdade. Como consequência o Luto pela perda irreparável da mãe, que poderia ser normal, tornou-se patológico.

No filme, Bellocchio evidencia uma cena significativa quando Massimo fazendo sua tarefa escolar, estudando a força da gravidade, pega a escultura de Napoleão, objeto de coleção do seu pai e a joga de uma janela como sua mãe havia se jogado. Esta seria a cena do filme que mostra o saber inconsciente que não chega ao consciente.

Relevante a cena, em que Massimo recebe uma caixinha de fósforo que era de sua mãe. Enquanto a examina, lembranças antes deslembradas, provocam nele uma violenta crise de pânico.

Estando só em seu apartamento e passando muitíssimo mal telefona para o hospital e conversa com uma médica que o acalma. Em seguida vai procurá-la no hospital e ela reafirma que ele não tem nada físico e, sim, emocional.

Finalmente dois eventos ajudaram Massimo a elaborar sua perda, após mais de 30 anos de sofrimento.

O primeiro foi a carta respondida por ele no jornal que trabalhava “La Stampa” a um assinante que pedia conselhos sobre questões que tinha com a mãe. Massimo é convocado por seu diretor a responder para esse leitor. É exatamente nesse momento que pôde purgar toda a sua emoção até então represada durante tantos anos.

Após esse evento aparece indo ao encontro da médica-namorada na festa comemorativa das bodas de seus avós. Chama atenção como fica feliz, dançando como dançava com sua mãe aos 9 anos antes desta adoecer. 

O segundo acontece quando Massimo está desmontando o apartamento onde passou sua infância após a morte do pai. Sentindo muita dificuldade em lidar com tantas memórias, pede a sua tia que o ajude, como uma criança, implora à tia que lhe conte como sua mãe morreu. Com espanto ela diz: “Até hoje ninguém te contou?” Ato contínuo, levanta-se e pega o jornal na estante no lugar onde o pai havia guardado e dá a Massimo. Nele está publicada a verdade sobre o suicídio e a doença de sua mãe.

Massimo, com mais de 30 anos, dá início a um processo doloroso,  o trabalho do luto, pois o vínculo de um indivíduo a um objeto, é representado por uma complexa teia de afetos e lembranças. A dissolução do luto, operará separadamente para cada uma das lembranças na purgação saudável dos afetos investidos.

Com maestria Bellocchio nos mostra um belíssimo final, Massimo com a ajuda da sua médica-namorada, sem tentar negar a perda sofrida por ele, de forma amorosa diz:

“Lasciala andare…” (Deixa ela ir…)

AUTORA 
Valy Giordano
Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Professora universitária da Faculdade Campos Salles \ Autora da tese de mestrado da PUC.SP – Subsídios da Profilaxia do Suicídio através da Educação \ Artigo publicado no livro de Roosevelt Cassorla: Estudos sobre o Suicídio \ Autora de dois livros de contos: As cartas não mentem jamais e Espelho Cruel.
E-mail — valy@uol.com.br

REFERÊNCIAS 
1.Freud, S. (1917). Luto e Melancolia. Imago.
2.Green, A. (1980). A mãe morta in Narcisismo de Vida e Narcisismo de morte. Escuta.
3.Bion, R. W. (1965). Capítulo 4 in As Transformações: a mudança do aprender para o crescer. Imago.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Fai Bei Sogni
Título inglês — Sweet Dreams
Título português — Belos Sonhos
Ano — 2016
Países — França – Itália
Duração — 134 min
Direção — Marco Bellocchio
Roteiro — Marco Bellocchio, Valia Santella, Eduoardo Albinati – Baseado no romance autobiográfico homônimo de Massimo Gramellini “Sweet Dreams Little One”
Produção — Beppe Caschetto
Fotografia — Daniele Ciprì
Música — Carlo Crivelli
Edição — Francesca Calvelli
Elenco — Valerio Mastandrea – Bérénice Bejo – Fabrizio Gifuni – Guido Caprino – Barbara Ronchi – Emmanuelle Devos – Miriam Leone – Francesco Scianna – Linda Messerklinger

SINOPSE
Baseado no romance autobiográfico homônimo de Massimo Gramellini. Massimo (Valerio Mastandrea) é um jornalista respeitado por seus colegas e que trabalha como vice-diretor no jornal italiano La Stampa. Aos 9 anos de idade, ele sofreu uma perda irreparável: a morte de sua mãe. Agora, já adulto, Massimo precisa encarar as memórias de seu passado doloroso quando decide vender o apartamento dos pais.
Desde a morte de sua mãe, Massimo se refugia na negação e na construção de figuras imaginárias. A narrativa parte, com avanços e recuos, para cerca de trinta anos depois, nos anos 90, após a morte do pai, em que Massimo volta a Torino para esvaziar a casa de infância, e segue até a sua vida de jornalista em Roma.