NO ÚTERO DA HUMANIDADE — Cave of Forgotten Dreams (2010)

 — ELSA COUCHINHO —

Em 1994, no Sul de França, perto do rio Ardèche, três espeleólogos descobrem a entrada de uma gruta. Uma passagem exígua por onde dificilmente passa uma pessoa. 

As primeiras galerias fazem crer que é apenas mais uma gruta de enorme beleza, uma nova passagem para o interior do corpo do planeta. Um interior onde cintilam os cristais e as formas de estalactites e estalagmites que a passagem do tempo esculpiu. À medida que se aventuram mais para o interior deparam-se com uma preciosa descoberta: as pinturas rupestres mais antigas encontradas até hoje (32.000 anos). Em homenagem a um desses espeleólogos passou a ser denominada Gruta Chauvet.

Reconhecida de imediato como património de enorme valor cultural e científico, a sua preservação e estudo foram de imediato acautelados, com a formação de uma equipa multidisciplinar (Geologia, História da Arte, Arqueologia, Paleontologia…) e o patrocínio do Ministério da Cultura Francês para este documentário realizado por Werner Herzog.

Herzog encaminha-nos através de uma transição entre a luz do dia e a escuridão do interior da Terra, entre o dentro e o fora, uma transição alicerçada no vínculo à realidade. Na caminhada até à gruta, os pés calcam a terra ao atravessar uma vinha, um terreno agrícola que testemunha a acção do Homem que, através da cultura modifica a paisagem de forma a garantir a sua subsistência mas também o prazer de viver. As uvas e o vinho,  o alimento e o prazer, celebrados na cultura romana nas festas em honra de Baco.

Esta transição quase nos prepara para o espaço onírico da gruta e para o encontro com esse lugar mítico, o útero da Humanidade. Um encontro com parte da nossa história comum enquanto espécie, um vislumbre dos nossos ancestrais. Um encontro que remete para o conceito de objecto estético de Meltzer (1), que evoca a experiência dupla de fascínio e de curiosidade, a par do temor e da angústia.

A equipa descreve angústias claustrofóbicas e persecutórias, “a sensação que os ancestrais nos observam”, o que nos remete para a curiosidade infantil e o desejo de conhecer que tantas vezes se faz acompanhar pelo temor de descobrir uma verdade assustadora e o receio de não se estar autorizado pelos pais a aceder a uma dimensão da qual se está excluído.

O que é que essa descoberta nos dirá sobre quem somos? Sairemos feridos no nosso narcisismo? Ganharemos um conhecimento que enriqueça a evolução humana?

As dúvidas e as angústias parecem ser contidas pela já referida transição entre a vigília e o onírico, entre o real e o imaginário, estabelecendo uma ancoragem no real, na vida, no prazer, na companhia de bons objectos internos. A caminhada pela gruta faz-se numa relação de confiança com o ambiente, uma relação organizadora do espaço potencial (2).

Pela entrada estreita, agora um pouco alargada, deixamos o plano do que é familiar e encontramos o cenário mágico que o brilho dos cristais compõe. Formas que os elementos naturais vão criando ao longo de milhões de anos. Esta é a escala de tempo que atravessamos, uma escala difícil de conceber, um tempo em que ainda não existíamos. Chegamos então à que seria para os nossos antepassados a entrada original da caverna.

Nesta cápsula do tempo dispõem-se pelo chão os esqueletos de ursos-das-cavernas, lobos, cabras dos Alpes, uma águia-real e hienas das cavernas. Numa área total de 400 metros não existe um único fragmento de esqueleto humano, o que faz supor que a caverna não era usada como espaço de habitação, levando a colocar a hipótese de um uso exclusivo para pintar e para cerimónias.

Naquela época toda a região se encontrava coberta por glaciares, o clima era hostil, ainda assim, o Homem do Paleolítico caminhava para este local para algo que o diferenciava dos outros animais: produzir arte. E, nesse sentido, a gruta constitui-se como útero da Humanidade, um local de origem (encontro com os ancestrais) e de criação artística, onde se engendra a especificidade da Humanidade: um atelier artístico, lugar de materialização da criatividade humana, exposta ao longo das paredes-telas.

Na entrada encontra-se uma composição com palmas de mãos, as assinaturas dos vários artistas do atelier. Um detalhe particular de um dedo mínimo permite identificar um pintor/autor em várias composições mais adiante, mas nem todas as pinturas têm o mesmo autor, algumas têm intervalos de 5000 mil anos entre elas, estamos perante um “atelier” de vários artistas que resiste à passagem do tempo e das gerações.

Artistas que através do seu conhecimento do mundo externo e a ligação à fantasia e imaginação, dramatizaram cerimónias de acasalamento e lutas entre animais. É de particular beleza o casal de leões em que a leoa roça com ternura o pescoço do leão. Como refere Herzog, há painéis em que estamos na presença de um proto-cinema, como frames de um filme animado, onde surgem os animais com numerosas patas, com penas ou com a boca aberta, que sugerem movimento e a narração de uma história.

Um insecto, uma borboleta/pássaro a voar, bisontes, rinocerontes lanudos, mamutes, cavalos, búfalos, panteras e auroques, um desfile de seres que partilhavam o mesmo território. No belíssimo painel dos cavalos, o pintor limpou cuidadosamente a parede-tela e aproveitou os relevos da rocha para dar forma à cena do galope.

Perante o poder encantatório da beleza e do poder criativo faltam as palavras.

Num determinado momento um dos elementos da equipa pede silêncio, para que se possa ouvir o silêncio da caverna e talvez, o bater do próprio coração. Antes da palavra, a emoção.

Achados arqueológicos da mesma época noutros lugares permitem-nos saber que o Homem Paleolítico fabricava instrumentos musicais, nomeadamente flautas, que imaginamos poderem também povoar o atelier com a produção de música.

Ocupados pela sobrevivência e pela subsistência num ambiente tão hostil, os nossos ancestrais parecem manifestar um especial empenho na produção artística, ou seja, numa produção de cultura que está para além da sobrevivência e da subsistência. Uma cultura que consolida os laços grupais, que permite uma outra experiência da vida comunitária, que permite passar conhecimento e criar narrativas sobre o mundo.

A par dos elementos circundantes que compunham o meio que habitavam, uma outra matéria parece revelar-se, composta de fantasia proveniente do subsolo inconsciente.

Numa das telas encontramos a figura de um Minotauro que parece testemunhar a existência de um repositório simbólico comum a toda a espécie humana compondo o inconsciente colectivo, material para os sonhos de todos os seres-humanos.

Um Minotauro que talvez nos relembre que a caminhada humana se faz enfrentando os nossos monstruosos desejos capazes de nos destruir, mas que, a saída do labirinto se faz pelo vínculo amoroso e criativo do fio de Ariadne.

AUTORA
Elsa Couchinho
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise e da International Psychoanalytic Association \ Psicanalista de Crianças e Adolescentes \ Docente do Instituto de Psicanálise
E-mail — elcouchinho@gmail.com

REFERÊNCIAS
1. Meltzer, D. & Williams, L. M. (1988). The Apprehension of Beauty: The Role of Aesthetic Conflict in Development, Art and Violence. Karnac.
2. Winnicott, D. (1967). O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro. Edições Imago.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título Original — Cave of Forgotten Dreams
Título Português — A Gruta dos Sonhos Perdidos (PT) \ Caverna dos Sonhos Esquecidos (BR)
Ano — 2010
Países — França – E.U.A. – Reino Unido – Canadá – Alemanha
Duração — 90 min
Realização — Werner Herzog
Argumento — Werner Herzog
Produção — Adrienne Ciuffo e Erik Nelson
Fotografia — Peter Zeitlinger
Cinematografia — Peter Zeitlinger
Edição — Joe Bini – Maya Hawke
Som — Eric Spitzer
Música — Ernst Reijseger
Elenco — Werner Herzog – Wulf Hein – Maria Malina – Nicholas Conard – Maurice Maurin – Charles Fathy – Wolker Schlondorff – Valerie Milenka Repnau – Jean Clottes – Dominique Baffier – Gilles Tosello – Jean-Michel Geneste – Valérie Feruglio

SINOPSE
Werner Herzog conduz-nos para o interior da Gruta Chauvet onde se encontram as pinturas rupestres mais antigas alguma vez encontradas. O documentário permite aceder à espantosa beleza das pinturas e acompanhar a investigação da equipa multidisciplinar que se dedica ao seu estudo.