SEDE DE VIVER — Poor Things (2023)

— JULIO HIRSCHHORN GHELLER —

O filme dirigido por Yorgos Lanthimos pode ser considerado como uma releitura do clássico “Frankenstein”. Conta com o desempenho extraordinário de Emma Stone, premiada com o Oscar de melhor atriz em 2024.

A história se passa na Inglaterra da era vitoriana. A personagem central é uma jovem mulher que tenta o suicídio por afogamento. Por pouco ela consegue o seu intento, mas é salva pelo Dr. Godwin Baxter, que a traz de volta à vida. Ele é um cientista, uma espécie de Frankenstein, ostentando cicatrizes grotescas no seu rosto, resultantes de experiências cruéis realizadas pelo seu próprio pai. Neste caso, a figura sugestiva de Frankenstein é a do médico e é ele que se propõe a construir uma nova criatura. Godwin, um exímio cirurgião, opera a jovem suicida – que estava grávida – e transplanta nela o cérebro do bebê que ela gestava em seu útero. Deste modo, uma mulher com o corpo de adulta terá a vida mental de um recém-nascido.

Godwin a batiza com o nome de Bella e a trata como filha. Ela tem gestos e comportamentos próprios de um bebê começando a interagir com o ambiente. Come com as mãos e cospe as comidas que não lhe apetecem. Caminha de um jeito desengonçado, pois está aprendendo a andar. Tem reações impulsivas, agressivas e descontroladas, ao passo que vai começando a falar. Obviamente não segue os padrões da etiqueta social, cujos elementos ainda não absorveu. Não desenvolveu um superego, de modo que fala e age sem censura. Entretanto, como uma verdadeira esponja, ela vai absorvendo noções provenientes da realidade que a cerca na casa de Godwin. Trata-se de uma realidade com um quê de fantástico, com destaque para as experiências bizarras conduzidas pelo estranho cientista, tais como os bichos híbridos de animais conhecidos, que circulam tranquilamente pelo espaço.

O filme começa em preto e branco e assim continua enquanto Bella vai se desenvolvendo. Ela vive protegida pelo pai possessivo, que conta com a ajuda de um assistente para acompanhar a evolução daquele que é o seu principal experimento. Max, o assistente, logo se apaixona por ela.

O despertar da libido se impõe casualmente a Bella, que aprende o prazer da masturbação. Essa descoberta representa o despertar da curiosidade dirigida a todos os aspectos de seu corpo e de seu entorno. Com o passar do tempo vai surgindo a vontade de sair daquela casa, que se torna muito pequena para ela. Godwin não aprova este seu desejo e chama um advogado para redigir um inusitado contrato de casamento entre Bella e Max. O contrato reza que o casal moraria para sempre naquela casa e ambos só sairiam ou viajariam se acompanhados por Godwin, que assim manteria a filha sob seu controle. É neste ponto que aparece o esperto advogado Duncan, um emérito conquistador. Ele se sente atraído por Bella e a seduz com seus galanteios. Com ele, Bella começa a experimentar relações sexuais – que ela graciosamente denomina de “saltos furiosos” –, gozando de prazer sem restrições. Duncan propõe uma viagem para fora daquela Londres em preto e branco. Ele será, além de parceiro sexual, uma espécie de tutor a apresentá-la a novos países e novos costumes.

A esta altura, Bella já é uma mulher inteligente e perspicaz, dotada de um pensamento lógico, claro e coerente, apesar de algo ingênua. Ela argumenta com o seu pai que ficaria muito infeliz caso não pudesse conhecer o mundo e fosse condenada a permanecer confinada naquela casa. Tendo convencido Godwin, ela embarca em um navio na companhia de Duncan.

A partir daí o filme se torna colorido e assume uma estética retro-futurista, com efeitos especiais de câmera. Lanthimos cria um visual surrealista, lembrando um sonho, enquanto acompanha as experiências da personagem principal. Fica patente a necessidade de se desfrutar de liberdade para poder aprender a partir de novas vivências.

A parada em Lisboa denota o espírito curioso de Bella, que flana pela cidade e se delicia com os sabores de comidas e bebidas. Ela devora os pastéis de Belém, bem como segue disposta a devorar novas informações.

Pouco a pouco ela vai se tornando independente em termos de ideias e valores, não se fixando em normas pré-estabelecidas. Dessa maneira, o próprio Duncan se desespera, pois, ao contrário do que supunha inicialmente, não consegue evitar um sentimento de apego ansioso por ela. Torturado pela paixão não correspondida, Duncan tenta, infrutiferamente, submeter Bella a um relacionamento possessivo. Entretanto, Bella não vê sentido em se prender a ele, numa evidente crítica ao machismo e ao esquema patriarcal tradicional. Ela afirma que está com ele apenas por prazer e divertimento, mas que, futuramente, ainda se casará com Max, a quem considera como seu prometido. Por aí se nota que Bella é uma mulher à frente de seu tempo, precursora de pautas feministas, levantando questões que são atuais no século XXI.

No navio, Bella conhece Harry, um sujeito melancólico e pessimista. Ele afirma que os seres humanos são feras cruéis. Nessa linha, cabe lembrar que Freud (1) já advertira em “Mal-estar na civilização” que “o homem é o lobo do próprio homem”, podendo explorar a força de trabalho do outro sem compensá-lo, despojá-lo de seus bens e apossar-se deles, bem como aproveitar-se sexualmente do outro sem seu consentimento. No mesmo texto, que trata da destrutividade do ser humano, Freud se mostra cético em relação ao êxito da religião e do socialismo como meios de eliminar a agressividade, a desigualdade e a rivalidade entre os homens. Em Alexandria, conduzida por Harry, Bella entra em contato com a pobreza extrema. O estado de miséria absoluta das pessoas a impacta profundamente. Um traço de consciência social e compaixão vai se delineando. Ainda no navio, conhece uma mulher idosa que já não se aflige com sensações derivadas da pulsão sexual e lhe diz que o que realmente importa é aquilo que está entre as orelhas. Esta recomendação reforça a atitude de Bella em privilegiar a observação e a reflexão.

Em face da falta de dinheiro, ela não vê nenhum problema em buscar trabalho em um bordel de Paris. É dona de seu corpo e não se constrange em utilizá-lo. As cenas de sexo não têm nada de pornográfico. Ela observa com atenção os indivíduos que passam pelo seu quarto. A ocupação como prostituta serve para uma espécie de pesquisa de campo, uma investigação psicológica dos vários tipos humanos que a procuram. Os homens são vistos em seus aspectos mais íntimos, revelando com nitidez as suas fraquezas.

Bella vai firmando as suas concepções, constituindo a sua subjetividade e estabelecendo seus próprios critérios de vida. Ela tem sede de viver e usufruir de tudo que encontra em seu percurso. Defende sua identidade própria e o direito à satisfação dos desejos, consolidando uma trajetória de emancipação. Faz amizade com uma colega de trabalho, que a introduz em reuniões de militantes socialistas. A partir deste aprendizado ela irá – como representante de sua classe profissional – solicitar melhores condições junto à dona do bordel. Envolvendo-se com a amiga socialista, não se furta a experimentar relações homossexuais. Progressivamente, ela vai se desvencilhando de preconceitos e denunciando o conservadorismo.

Bella não coloca limites para a sua pulsão epistemofílica. As nuances emocionais em suas experiências com os outros são muito bem detalhadas por Lanthimos. Ela se relaciona com as pessoas de uma maneira em que a experiência emocional vivenciada é de predomínio do vínculo K, de knowledge (3). O vínculo K, como conceituado por Bion, é o que existe entre um sujeito que pretende conhecer um objeto, que pode ser ele próprio ou alguém de fora. Significa no caso de Bella a busca de conhecer a verdade sobre si mesma.

Enquanto isso, Godwin adoece e se submete a uma cirurgia com Max. Ambos se dão conta da existência de um tumor inoperável e que o prognóstico está selado. Bella retorna a Londres para rever seu suposto pai e fica sabendo da sua verdadeira origem. Diante disso ela percebe sentimentos ambivalentes em relação a Godwin: é grata por ele ter salvo sua vida, mas sente raiva por ele ter lhe omitido a verdadeira história de sua origem.

Ela vem a saber de outro importante detalhe de seu passado quando aparece seu ex-marido, um militar truculento e autoritário que a sequestra em sua propriedade. Pode-se deduzir que a infelicidade conjugal a havia impelido ao suicídio. Coerentemente, ela opta então por seguir com a identidade de Bella, deixando para trás a vida anterior, que não tinha mais nada a ver com ela.

No final do filme, Bella se vinga do ex-marido, que tem seu cérebro substituído pelo cérebro de uma cabra. Torna-se evidente a complexidade do psiquismo humano, em que pulsão de vida e pulsão de morte estão intrincadas. Bella também brinca de deus ao construir uma nova criatura, dando vazão a seus conteúdos sádicos. Ela é capaz de gestos generosos, mas não está isenta de sadismo.

A parte final do filme foi questionada por alguns críticos. De certa maneira, dilui-se a força do que era a narrativa central, que aborda a jornada de crescimento de uma mulher em busca de ser a pessoa que ela, em essência, é. No entanto, as mensagens nesse sentido, salientando o espírito independente de Bella, uma autêntica livre-pensadora, adepta da ciência, da razão e da lógica, já haviam sido apontadas ao longo de quase duas horas de filme.

Para finalizar, cabe ressaltar que Lacan (2), no seminário 7, em Julho de 1960, formulou a pergunta fundamental da ética da psicanálise: “Agiste em conformidade com teu desejo?” Diante desta indagação, Bella poderia, certamente, responder que sim.

AUTOR
Julio Hirschhorn Gheller
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
E-mail — juliohg@uol.com.br

REFERÊNCIAS
1.Freud, S. (2010). O Mal-estar na civilização. Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930).
2.Lacan, J. (1988). Os paradoxos da ética. In O Seminário, livro7: a ética da psicanálise. Jorge Zahar.
3.Zimerman, E. D. (2004). Uma teoria do conhecimento. In Bion da teoria à prática. Artmed.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Poor Things
Título português — Pobres Criaturas
Ano — 2023
País — 181 min
Direção — Yorgos Lanthimos
Roteiro — Tony Mc Namara, adaptação da obra original de Alasdair Gray
Produção — Ed Guiney – Yorgos Lanthimos – Emma Stone – Daniel Battsek, Andrew Lowe
Fotografia — Robbie Ryan
Trilha Sonora — Jerskin Fendrix
Montagem — Yorgos Mavropsaridis
Figurino — Holly Waddington
Maquiagem — Nadia Stacey
Cenografia — Shona Heath
Elenco — Emma Stone – Mark Ruffalo – Wilem Dafoe – Ramy Youssef – Christopher Abbottt – Suzy Bemba – Jerrod Carmichael – Kathryn Hunter – Vicky Pepperdine – Margaret Qualley – Hanna Schygulla

SINOPSE
Pobres Criaturas, filme do diretor Yorgos Lanthimos, é baseado em um romance de Alasdair Grey. Relata a história de Bella Baxter, uma mulher que tenta o suicídio, mas é trazida de volta à vida pelo doutor Godwin que a salva, substituindo seu cérebro pelo do bebê que ela gestava. Bella vai se desenvolvendo e surge o desejo de conhecer o mundo. A sua jornada de emancipação e crescimento pessoal, em busca de coerência e afirmação de uma identidade própria é o que dá o tom do filme.