FRAGILIDADES, PERDAS E CULPAS — Three Billboards Outside Ebbing, Missouri (2017)

— GUSTAVO BANDEIRA-NEVES — 

Nem a todos os filmes chamo cinema porque este exige arte, i.e., compromisso com o simbólico. 

O filme “Três Cartazes à Beira da Estrada” de 2017, escrito, realizado e co-produzido por Martin McDonagh, tem, desde o seu título, as coordenadas síntese do que se propõe tratar. 

Quer no titulo para Portugal, quer no original inglês — Three Billboards outside Ebbing, Missouri — é incluída a palavra “três” e com ela anuncia, antes de outros também indispensáveis sentidos, os três actos do guião: trauma, catarse e elaboração; mas também sugere tout court o tripé da topografia em causa: a casa da mãe Mildred — o pessoal, familiar e íntimo; a esquadra de polícia — o plural e a lei; e o conjunto escritório publicitário-bar-loja de recordações-restaurante — o social. Tudo como o continente externo da estória. 

Também a palavra “cartazes/billboards” sugere o palimpsesto urbano e psicológico em constante renovação, aqui ditando desejo e comportamento, mas simbolizando, “à Lacan, l’object a”, Objecto de Desejo Inalcançável sempre adiado, e, antes disso, expressão do Princípio de Prazer representando promessas de gratificação, mas ainda como Campo de Projecções, i.e., espelhos distorcidos do Self e expressão de conflitos entre o Id e o SuperEgo criando assim uma área intermediária entre (o traumático encontro com) a realidade e a fantasia. 

Depois, o nome de uma terra imaginada, “Ebbing” palavra que, em si mesma, significa o movimento regular, cíclico e transitório de recuo ou vazante das águas na maré baixa, como sinónimo de refluxo de intensidade, de força ou de emoções e sentimentos, eventual perda gradual de esperança ou influência, mas também o distanciamento emocional, afastamento entre as pessoas e isolamento social ou, até, geográfico. Além de que a maré vazante deixa à vista p. ex. a verdade do que antes estava submerso, esquecido ou oculto. Enfim, forças maiores impossíveis de controlar completamente, representantes de perdas e, também, de renovação, logo, a necessidade de adaptação à mudança. 

Além disto, o que já não é pouco, há ainda a escolha da localização no “Missouri”, estado bem interior dos EUA, com um nome que na sua origem indígena significa, aqui tão sugestivamente, “povo das canoas grandes”, mas também pode querer dizer água lamacenta ou turva, povo marginal ou das margens do rio. 

Nesta obra cinematográfica não há, então, desde o próprio título, um instante que não tenha a clara intenção de remeter para algo mais do que na tela aparece plasmado. Pode bem dizer-se tratar-se de um trabalho debruçado, quase só, sobre as vicissitudes do concreto, dos Elementos Beta, preponderantemente condicionados pelos Vínculos H, de Bion, mais ou menos precoces. 

Já no explícito, dir-se-á que o tema essencial é o Processo de Luto, do luto complicado pela culpa. Na mãe (Mildred Hayes) a perda de uma filha, da dignidade dessa filha, da relação empática mãe-filha já antes perdida, do casamento e também a perda do sentimento de justiça policial e jurídica: temas mais ou menos comuns na humanidade e de máxima actualidade global. 

Também o luto pelo amadurecimento perdido, consequência da ruptura da continuidade do ser induzida pela mãe simbiótica propiciadora do desmentido (polícia Jason Dixon); o luto pela perda da expectável esperança de vida (chefe Bill Willoughby), enfim, o luto pelo amparo-limites, logo da confiança básica que, pelo menos a alguns deles, obviamente terá faltado desde o início. Tudo isso, muito provavelmente, em quase todos vivido na avassaladora “confusão de línguas” referida por Ferenczi e tão claramente visível, p. ex., em “partes” de Dixon no convívio com sua mãe. 

E se a tragédia, como a que aqui se expõe, reactiva experiências emocionais depressivas precoces não elaboradas devido às limitações do aparelho mental de então, daí, logo se oferecem ao espectador toda uma série de propostas de interpretação mais ou menos conscientes, mais ou menos esclarecidas de toda esta obra, de todas as imagens e sons que nos são propostos e que, por isso, inevitavelmente repercutem na experiência de vida de quem quer que a presencie. 

Mas no implícito, podemos pensar que o tema em causa é o constante e agitado movimento entre a experiência da tristeza e a da sua, sempre possível, insuportabilidade, grande obstáculo ou antecâmara da elaboração. 

Veja-se: os painéis que começam por ser apresentados abandonados e em desmoronamento talvez, inconscientemente, tenham sugerido à enlutada mãe, ao passar por eles, o insuportável sentimento de desmoronamento da relação materna — quem sabe se da sua própria também — e da relação conjugal; a imprestabilidade da sua vida como mãe; os escombros da filha em fuga enraivecida e logo depois assassinada e violada. Nesse instante, a ideia súbita dos cartazes que lhe ocorre expor, talvez porque também objectos transicionais — momento a partir do qual a apresentação da personagem se transforma, até no seu aspecto exterior, num ser algo andrógino e quase “brutalista” — é um movimento por todos condenado e que, quando muito, até à própria, naquele instante equivalerá, tão só, ao ínfimo toque com que, no parapeito da janela do escritório do publicista, põe de pé a perdida e desesperada barata. A mãe barata a tentar recompor-se. Quem sabe se em memória do aclamado livro “A Paixão Segundo G.H.” de Clarice Lispector (2) onde a protagonista tem um encontro revelação com uma barata quando, em sua casa, limpava o quarto de alguém que se despedira – “Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido” … “Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo” … “Perdão é um atributo da matéria viva”. Barata que, no entanto, não deixará de ser uma insignificante barata. Mas nem sempre o que parece é. Naquele instante, porém, a ideia dos cartazes parece estar a ser por si vivida em acting out, em catártica provocação-retaliação que deseja tão violenta quanto a desesperante razão dela. 

Aos olhos do polícia-pseudo-super-homem a beleza simples e exuberante de tais publicações transforma-se num vibrante atrevimento, ameaçante e tão desafiador que logo, como se adivinha frequente na vida dele, o impede de pensar. O continente não tem a capacidade de conter, de conter o enraivecido conteúdo. 

Entretanto, no avesso das tragédias, os “chefes de polícia” são a excepção, tanto o primeiro e principal (Bill), como o segundo (Abercrombie (1)) que vem substituí-lo logo após o seu corajoso e não menos generoso suicídio que na véspera tinha preparado com um tão tocante encontro familiar — que a mim me fez lembrar de “A Vida é Bela” de Roberto Benigni — evidenciam incomum capacidade de tolerância ao sofrimento, de tolerância ao que se lhe opõe apesar das inevitáveis contradições internas.

Ao longo da obra, os movimentos maturativos que nos vão sendo sugeridos conduzem-nos à evidência de situações surpreendentes: a improvável e tolerante convivência no quarto de hospital entre o agredido publicitário Welby e o queimado polícia Dixon seu agressor, bem como a aliança final Dixon/Mildred, em que o ambiente depressivo interno e a identificação projectiva de todos terão sido determinantes. Nestes últimos, uma aliança entre a “mãe suficientemente boa” e o “filho” que nem precisa de ser inventado já que emocionalmente tão bem conhecido dessa mãe agora “adoptiva”. Nesse processo de maturativo “confronto com a dura realidade” terá tido também grande significado emocional a tremenda perda do pai/irmão/chefe Bill na vida de Dixon e, por seu lado, a iminente reclusão da mãe Mildred só evitada por inesperado gesto de amor embora surgido de alguém narcisicamente insuportável. 

Como mera adenda a estes comentários deixo alguns apontamentos que achei mais simbólicos. 

As ruínas (p. ex., dos painéis publicitários) sobre as quais pode e vai erigir-se o novo. 

A pedreira a céu aberto, cicatriz do abuso prévio. 

A abrir, a mãe ainda de cabelos compridos com penteado e indumentária clássicos, face aos painéis em ruínas, em escombros, faz marcha atrás. 

O polícia-criança que surge da escuridão e se depara com os já resplandecentes painéis e só consegue experimentar o que vê como ataque a si porque dirigido ao seu idealizado alter ego e chefe na polícia. 

No diálogo do chefe da polícia com a mãe é este que, empaticamente, sugere limites de racionalidade à perdida queixosa. 

Quando a viúva lê “a carta do defunto” há um semáforo vermelho e um comboio que passa naquele instante eterno e efémero. 

“Robbie!”, um grito, da mãe para o filho no momento de tentar salvar o já perdido, que será, sobretudo, de socorro em vez de raiva, da raiva que parece. 

No hospital, as lágrimas para um, curativas, são para o outro, abrasivas porque vividas conforme cada um naquele vibrante instante. 

AUTOR 
Gustavo Bandeira-Neves 
Psiquiatra \ Psicanalista \ Membro associado da SPP e IPA \ Porto 
E-mail — gbandeiraneves@gmail.com 

REFERÊNCIAS 
1.Abercrombie – possível homenagem ao erudito, algo rebelde e proeminente guitarrista americano de jazz John Abercrombie (1944-2017). https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Abercrombie_(m%C3%BAsico)
2.Lispector, C. (1964). A paixão segundo G. H. Edição Rocco.

TRAILER

FICHA TÉCNICA 
Título original — Three Billboards Outside Ebbing, Missouri 
Título português — Três Cartazes à Beira da Estrada (PT) / Três Anúncios para um Crime (BR) 
Ano — 2017 
País — E.U.A. e Reino Unido 
Duração — 115 min 
Realizador — Martin McDonagh
Produção — Graham Broadbent – Pete Czernin — Martin McDonagh 
Argumento — Martin McDonagh 
Edição—Jon Gregory 
Fotografia — Ben Davis
Música — Carter Burwell  
Elenco — Frances McDormand – Woody Harrelson – Sam Rockwell – John Hawkes — Peter Dinklage — Lucas Hedges — Abbie Cornish — Samara Weaving — Caleb Landry Jones — Clarke Peters — Darrell Britt-Gibson — Kathryn Newton — Kerry Condon — Željko Ivanek — Amanda Warren — Sandy Martin — Christopher Berry — Nick Searcy 

SINOPSE 
Inconformada com a ineficácia da polícia em encontrar o culpado pelo brutal assassinato de sua filha, Mildred Hayes (Frances McDormand) decide chamar atenção para o caso não solucionado alugando três outdoors de uma estrada raramente usada. A inesperada atitude repercute em toda a cidade e as suas consequências afetam várias pessoas, especialmente a própria Mildred e o Delegado Bill Willoughby (Woody Harrelson), responsável pela investigação.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Three_Billboards_Outside_Ebbing, Missouri)