A SOMBRA DO INESPERADO — The Stranger in Me (2008)

— MARIA HELENA (NENA) HESSEL —

“A missanga, todos a veem.
Ninguém nota o fio que, em colar vistoso,
vai compondo as missangas.”
Mia Couto – “O Fio das Missangas”

Numa entrevista recente, Emily Atef, a realizadora de “O Estranho em Mim”, conta que quando era pequena, sua cadela desapareceu. Procuram o veterinário que lhes conta que um lobo, ao sentir-se doente, afasta-se da matilha para morrer sozinho. Os pastores alemães têm uma raça semelhante à dos lobos. Este fato a marcou.

A APRESENTAÇÃO DO FILME

Uma mulher jovem, cabelos desgrenhados, a caminhar pelo meio da mata, sem rumo. Desprovidas de vida, a mata e ela. Ouvimos estalos de galhos que quebram à medida que são pisados por seus passos trôpegos. Teria escapado de um cativeiro? Não podemos ver seu rosto. Estará descalça? Sentirá dor? Que dores sente, ou já não as sente? Ficamos angustiados diante de um terror desconhecido.

A cena é bruscamente interrompida.

Uma linda mulher faz arranjos de flores em sua loja e, cheia de ternura, fala com seu bebê que a chuta, de dentro de sua barriga: “deixe a mamãe trabalhar”. Anuncia-se uma futura mãe satisfeita e tranquila.

Num apartamento vê-se Julien e Rebecca juntos, a preparar espaços físicos e psíquicos na antecipação do filho que vai chegar.

Detalhes nos levam a perceber a fragilidade da rede familiar de apoio. O pai de Julian, presente, revela sentimentos hostis diante da nova família do filho. Um retrato na parede leva-nos a saber que o pai de Rebecca vivia longe e morreu antes de ver nascer o neto. Por outro lado, sua mãe, que mora no Canadá com um companheiro gravemente doente, estará indisponível para acompanhá-la.

Vida e Morte aparecem como pano de fundo e fica assim sugerido que Rebecca está no processo de tornar-se mãe, em momento de perda e separação.

Nova cena: o casal está numa banheira e aparecem carinhosamente ligados um ao outro.

Novo corte abrupto: estão ambos deitados na cama. Dormem. Ela se levanta devagar, tomando cuidado para não acordar Julian. Vê-se que está sem barriga. Somos surpreendidos e nos perguntamos: ela vai ver o bebê? Terá nascido? Pega a bolsa, calça os tênis e sai.

Cadê o bebê?

Acorda num ônibus parado no final da linha. Levanta-se, caminha ao longo de uma estrada. Entra na mata desconhecida. Agora, de frente para a câmera, vemos seu olhar vazio. Parece desfigurada por um cansaço extremo. Deita-se num lugar dentro dessa mata, aquela mesma mata onde a víamos andar sem rumo. Era a mulher do início.

A LUZ FEZ-SE SOMBRA

“…Mas nós não podemos “ver” tão facilmente essa turbulência, no mundo que chamamos de mente”. (1)

Rebecca vive o momento de dar à luz a seu filho como uma catástrofe.

O impacto estético do bebê recém-saído de seu ventre e colocado em seu colo, inverte abruptamente o sentido da experiência da maternidade. O parto foi o evento precipitador de um breakdown. Sofre de uma inesperada ausência de si mesma num caos emocional que a fragmenta.

Diante de proporções catastróficas, o inter-jogo na situação inicial da vida de Rebecca com seu filho Lukas, passa a ser aquele de um mal-entendido: ela, a Mãe que cuida, está desamparada e vazia e sem condições de cuidar do recém-nascido vulnerável e dependente.

As tentativas para amamentar Lukas mostram-se a cada dia mais frustrantes. Está só e suas expressões são de desespero. Chora, mas ninguém está perto para ver. Não consegue olhar para o filho e busca saber, através do olhar daqueles que o veem, aquilo que não consegue enxergar ou sentir. Na video-chamada com sua mãe distante, demonstra sua angústia, que não é percebida.

O marido, também desamparado diante da mulher que está irreconhecível, nada pode compreender. Desespera-se e afasta-se gradativamente diante do que vê. Rebecca não é a mãe que abraça o filho e lhe dá o seio com dedicação, conforme o esperado. Desorientado diante daquilo que está lá, mas não pode “ver”, perde a condição de exercer aquilo que Bernard Golse (5) chama de função paterna de vinculação da Mãe com seu Bebê, tão importante na perinatalidade.

A chegada de um terceiro, o filho, trouxe para a relação do casal a turbulência emocional que os invadiu com fenômenos mentais desconhecidos, emoções para as quais não se encontra significado se não houver um continente capaz de acolhê-las para a possível elaboração.

O horror que ela experimenta é projetado em seu bebê e faz com que não suporte seu olhar, seu choro, sua dependência. O horror passa a viver dentro dela e, condenatório, instala-se no olhar das pessoas que a rodeiam.

Ao deprimido faltam palavras. Está assolado por um mutismo. Como diz Jean-Claude Rolland (6): “A língua, que já lá esteve, não mais está para reconhecer o que se passa, ou para pedir a ajuda que desesperadamente procura.”

Procura? Ou simplesmente não se dá conta? Permanece desabitada de sentido. Morta. Na perda da fala instala-se a desesperança.

Sofre de uma doença que não tem sinais no corpo para ser identificada e tratada. Uma depressão pós-parto que horroriza a todos que estão por perto, já que se contrapõe à imagem da beleza pura de uma Mãe amamentando seu filho ao peito, tão esperada e sonhada.

Como os lobos, e como a cadela de Emily Atef, Rebecca, depois de ter esquecido Lukas em seu carrinho na rua e finalmente ter tentado afogá-lo no banho, afasta-se para morrer.

A RECUPERAÇÃO

Vemos o corpo de Rebecca coberto de restos de folhas, iluminado por lanternas, à noite, encontrado na mata escura. Morta?

Somos pegos de surpresa por um novo impacto estético.

Sua mãe vem encontrá-la na clínica para onde é levada e recebe os primeiros socorros físicos. Dá-se conta de que o tratamento necessário deve acontecer numa clínica de reabilitação psíquica.

Sem muitas palavras, é no colo dela que Rebecca se encolhe num estado regredido até voltar a falar, a olhar, a existir.

A narrativa do filme deixa-nos perceber como a presença do olhar da mãe e do psiquiatra cria uma atmosfera emocional que acolhe Rebecca com toda a sua dor, confusão e solidão.

Os fatos vividos que a aterrorizaram puderam ser nomeados pelo psiquiatra, que ao primeiro contato, diz-lhe: “O que a faz sentir-se mal tem um nome – depressão pós-parto – e acontece com algumas pessoas”. Pergunta-lhe se pensa em suicídio. Rebecca balança timidamente a cabeça e sai do primeiro encontro concordando em não se matar.

Primeiro acordo de confiança. Aos poucos, com a mãe ao lado, busca saber do filho.

“Você já pensou no quanto procurou proteger seu filho ao se afastar dele?” diz o terapeuta quando ela lhe conta que quase afogou seu bebê na banheira. Com esta observação, resgata um aspecto protetor e traz uma mudança de sentido possibilitador do sentimento de capacidade materna.

“Não precisa sentir vergonha do que lhe aconteceu. Comigo também foi assim”, disse-lhe a terapeuta que cuidou da aproximação dela com o bebê e o marido.

Aos poucos, Rebecca começa a desejar se aproximar de seu filho. A história do desastre vivido começou a ser reconstruída numa versão produzida com significados na direção da reintegração do Self.

Estava inteira para cuidar dele e de sua própria vida. Rebecca pôde se aproximar de sua maternidade quando finalmente encontrou uma atmosfera de base que possibilitou uma nova vinculação com seu filho e seu marido, num trabalho conjunto com uma terapeuta, capaz de lidar com a transferência e contratransferência que acontecia nos encontros.

O marido, que por sua vez perdera a mulher, a família, o emprego, ao reencontrar em Rebecca a sua mulher, aproximou-se dos fatos da doença psíquica que esta havia sofrido e puderam os dois, afinal, ter uma família, com a possibilidade de co-construírem as funções de Pai e Mãe.

SOBRE O IMPACTO ESTÉTICO DO FILME

“Apesar de tudo, um desastre real está sendo apresentado. Um desastre tão grande quanto a alma, ou uma destruição do Self ou do mundo, um Apocalipse Now, e daí para diante. Um apocalipse para sempre.” (3)

A representação das relações emocionais subjetivas das quais se constitui a Psicanálise tem como desafio o uso da linguagem falada.

Por meio de imagens, sons, silêncios e principalmente mudanças bruscas de cena, Emily Atef, na arte do cinema, dá-nos uma oportunidade de viver a turbulência emocional de um objeto estético. Bion chamaria isto de uma “linguagem de êxito”.

“A capacidade terapêutica do objeto estético (belo) não resulta da modificação da feiura das emoções destrutivas ou dolorosas; pelo contrário, o objeto conserva suas qualidades perigosas” (…) “Não é suficiente para o objeto estético ser apenas um continente; ele também deve ser um transformador, e a plenitude do impacto da Beleza tem esse poder.” (4)

Como Bion observa, o encontro entre humanos sempre nos surpreende com a turbulência emocional que ocasiona. A cada vez que abrimos a porta do consultório para aquele paciente que vimos no dia anterior, é para um estranho que a abrimos.

“Fica, oh, brisa fica, pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar”
(7)

AUTORA
Maria Helena (Nena) Hessel
Geógrafa \ Psicopedagoga \ Formação em Psicanálise (Instituto Sedes Sapientiae) \ Psicanalista Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Membro Titular da Associação Portuguesa de Observação de Bebês Bick (APOBB)
E-mail — nenahessel@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Williams, M.H. (2018). O Desenvolvimento Estético –(citando Bion, W. R. 1973-1974,vol I, pp. 41-42). Blucher.
2.Bollas, C. (2013) – Catch them before they fall -The Psychoanalysis of Breakdown. Routledge.
3.Eigen, M. (2010)- The Sensitive Self- Chapter 4 “Half to Half” by Wesleyan University Press, Middletown, CT.
4.Williams, M.H. (2018). O desenvolvimento estético (pp.79-80). Blucher.
5.Golse, B. (2014). Jornada: Parentalidade na Perinatalidade (outubro 2024) “A Função Paterna Pré-edipiana”.
6.Rolland, J.C. (2017). Antes de ser aquele que fala – “A Fala e seus destinos”. Blucher
7.Alf, J.- Eu e a Brisa, in Album Johnny Alf – Eu e a Brisa (1997).

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Das Fremde in mir
Título inglês — The Stranger in Me
Título português — O Estranho em Mim
Ano — 2008
País — Alemanha
Duração — 99 min
Realizador — Emily Atef
Argumento — Emily Atef e Esther Bernstorff
Produção — Nicole Gerhards
Fotografia — Henner Besuch
Música — Manfred Eicher
Som — Jacob Ilgner
Edição — Beatrice Babin
Elenco — Susanne Wolff – Johann von Bülow – Maren Kroymann – Hans Diehl – Judith Engel – Dörte Lyssewski – Herbert Fritsch – Klaus Pohl – Brigitte Zeh

SINOPSE
Rebecca está grávida de seu primeiro filho e aguarda sua chegada, juntamente com Julien, seu marido, com sonhos e alegria.
Tudo parece ir bem até o nascimento. O bebê é visto com estranheza pela mãe, que apresenta inúmeras dificuldades para amamentar. Na ausência de um olhar de apoio, o sentimento de solidão começa a levá-la ao desespero, com consequências dramáticas.
O conflito da Depressão Pós-Parto apresentado pela diretora, através da interpretação fabulosa de Susanne Wolff, dos fatos selecionados e da forma com a qual apresenta as cenas, nos dá a conhecer a intimidade desse transtorno na inesperada mudança emocional vivida pela Mãe e pelo Pai no momento de dar à luz ao seu filho.
Quando afinal obtém ajuda terapêutica, com a qual encontra significados para o “Estranho dentro dela”, começa a olhar para o bebê e a construir a maternidade necessária para a sobrevivência psíquica dos dois. O Pai, Julien, que também se sentiu perdido neste processo, alcança por sua vez a dimensão da realidade vivida por sua mulher-mãe-de-seu filho e se aproxima. E a unidade familiar se salva do inesperado golpe que sofreu.