AS BESTAS EM NÓS! — The Beast (2023)

— PEDRO PIRES — 

Jean-Marie Samocki, estudioso francês de cinema, assina um artigo no último número do ano da revista Cahiers du Cinema (2024), que intitula de “Poeiras de um ano mau”, e em que destaca vários filmes de 2024 pela sua atualidade e acutilância perante a realidade histórica que o mundo está a viver. “A realidade imita estranhamente a montagem cinematográfica”, escreve Samocki (4, p.14), colocando o filme de Bonello como uma obra que nos interroga sobre o futuro da história da humanidade. 

“A Besta”é um filme de paradoxos, desde logo na definição do género cinematográfico, podendo ser considerado um filme distópico, mas também utópico, melodramático e ainda um thriller. O seu argumento segue a mesma linha da paradoxalidade. A história é narrada através do encontro sucessivo de um casal (Gabrielle, interpretada magnificamente por Léa Seydoux e Louis, no corpo do ator George MacKay), em 2044, em 2014 e em 1910. 

Sobre esta preciosidade, e originalidade, do tempo narrativo, Samocki (4) descreve “A Besta” como um filme que decorre num tempo eterno que não corresponde à temporalidade humana. A partir desta ideia de tempo eterno facilmente nos podemos desviar para a noção do tempo do inconsciente. O inconsciente como uma medida de tempo humano, universal e independente da época histórica, dos lugares e das pessoas. 

Para que o tempo se unifique, Bonello empurra-nos para 2044, para o tempo em que a inteligência artificial ocupa o lugar do humano, e em que, para competir com as máquinas, ao humano só lhe resta uma solução: libertar-se do tempo que o define, o das suas emoções. 

Gabrielle acaba por aceitar submeter-se a um tratamento de purificação do seu ADN para apagar as suas emoções e traumas do passado, na tentativa de sobreviver, aproximando-se do funcionamento de uma máquina. Mergulhamos, então, no seu, nosso, inconsciente… E o que vemos? 

No início do filme, Gabrielle, num cenário totalmente verde, encena o medo à aproximação da besta. Está assim montada a metáfora do filme e da vida: onde estamos? não há cenário; o que é a besta? não a vemos, só ouvimos ruídos; porque temos medo? respiramos ofegantemente, pegamos numa faca e… gritamos. 

Todas estas dúvidas serão vividas pelo mesmo casal que se encontrará romanticamente no passado, em 1910, depois em versão thriller no presente, em 2014, para finalmente se reencontrarem distopicamente no futuro de 2044. E o que há em comum nestes três tempos? O medo! 

“Como uma fera agachada na selva, a preparar o salto. Se a fera estava destinada a matá-lo ou a ser morta por ele, era irrelevante. Era esta imagem que ele por fim formulara para configurar a sua vida”(2, pp. 34-35). Esta é a ideia central do livro de Henry James, A Fera na Selva, de 1903, que serviu de inspiração para o filme de Bonello, e que poderemos utilizar para descrever exemplarmente a cena inicial do filme. É esta besta, pronta a saltar, que impedirá Gabrielle e Louis, e também John Marcher e May Bartram, no livro de Henry James, de viverem o amor, ou o “amor perene” como nos lembrará Bonello através da letra da canção interpretada por Roy Orbison, Evergreen, que fecha comoventemente o filme. 

Em 1903, Henry James traz-nos uma descrição metafórica do que é a angústia, cuja compreensão Freud nos propôs anos depois, em 1926, através do seu texto: Inibição, sintoma e angústia (1).

Voltando à cena inicial do filme, à Gabrielle perdida no cenário verde à espera da besta, poderíamos descrevê-la de novo e agora através das palavras de Freud: ”A situação de perigo é a reconhecida, recordada, esperada situação de desamparo. A angústia é a original reação ao desamparo no trauma, que depois é reproduzida na situação de perigo como sinal para ajuda” (1, p.86).

Também Winnicott nos pode propôr um pensamento para o medo de Gabrielle, quando escreve, em Fear of breakdown (5), que esse medo já aconteceu no passado, “near the beginning of the individual’s life” (p. 105), mas porque não foi vivido ele é procurado incessante e atormentadamente no futuro. 

Bonello, usa o surrealismo para nos mostrar que se fosse possível viver o passado traumático e emocionarmo-nos no presente com a memória desse passado vivido, então o futuro seria vivido sem o medo da besta, sem o medo de amar. 

Mas não será a psicanálise uma possibilidade de se viver no presente o que foi vivido no passado não lembrado, libertando-nos da besta que nos impede de viver? Ogden (3) na sua leitura de Fear of breakdown apresentar-se-ia a Gabrielle, no cenário verde à espera da besta, acompanhando-a no seu desamparo e projetando no cenário verde as memórias de infância de Gabrielle. Assim, nesse novo “filme”, a cena do medo da espera da besta possivelmente desapareceria: “So, the past event that occurred, but was not experienced, continues to torment the patient until it is lived in the present” (3, p.214), com o analista. 

Em 2018 Lisboa recebeu a Fera na Selva, na sua versão de peça teatral, com grande entusiasmo pelo público que viveu a espera da fera no cenário de uma casa inglesa do início do século XX, no pequeno auditório do Centro Cultural de Belém, com os atores Margarida Marinho e Filipe Duarte. Trata-se de uma adaptação para o teatro de 1983 da obra de James por Marguerite Duras. Vivemos com John Marcher e May Bartram a angústia da espera, e o cenário podia ser o verde indiferenciado do filme de Bonello, em que cada um de nós se identifica ora com aquele que espera a besta, ora com quem está ao lado de quem espera a besta. 

A nossa própria besta revela-se em James, em Duras e em Bonello. Mas as bestas têm medo das palavras poéticas dos escritores, da voz dos atores e das imagens do cinema. A arte projeta-se no cenário verde e deixamos de estar sós. E as bestas são, afinal, meras poeiras de um ano mau! 

AUTOR
Pedro Pires
Psiquiatra da Infância e da Adolescência \ Membro da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Diretor do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência – Hospital Garcia de Orta (2008-2022) \ Membro da Direção do Colégio de Psiquiatria da Infância e da Adolescência da Ordem dos Médicos (2009-2024) \ Membro do Conselho Nacional de Saúde Mental (2009-2025) \ Membro do Conselho de Redação da Revista Portuguesa de Pedopsiquiatria.
E-mail — pedropires26@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. Em S. Freud, Obras completas, vol.17 (pp. 9-98). Companhia das Letras. (Original publicado em 1926.) 
2.James, H. (2023). A fera na selva. Dom Quixote. (Original publicado em 1903.) pp. 34-35.
3.Ogden, T. (2014). Fear of breakdown and the unlived life. The International Journal of Psychoanalysis, 95, 205-223.
4.Samocki, J-M. (2024). Poussières d’an pire. Cahiers du Cinema, 815, 14-17.
5.Winnicott, D. W. (1974). Fear of breakdown. International Review of Psycho-Analysis, 1, 103-107.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — La Bête
Título inglês — The Beast
Título português — A Besta
Ano — 2023
País — França e Canadá
Duração — 145 min
Realizador — Bertrand Bonello
Argumento — Bertrand Bonello, baseado numa história por Bertrand Bonello, Benjamin Charbit e Guillaume Bréaud, inspirada no romance “The Beast in the Jungle” de Henry James, 1903. 
Produção — Justin Taurand e Bertrand Bonello
Fotografia — Josée Deshales
Música — Bertrand Bonello e Anna Bonello
Edição — Anita Roth
Elenco — Léa Seydoux – George MacKay – Guslagie Malanda, – Dasha Nekrasova – Martin Scali – Elina Löwensohn – Marta Hoskins – Julia Faure – Kester Lovelace – Félicien Pinot – Laurent Lacotte

SINOPSE
Em um futuro próximo onde as emoções se tornaram uma ameaça, Gabrielle (Léa Seydoux) finalmente consegue “purificar” seu DNA em uma máquina que a conecta a vidas passadas, eliminando quaisquer sentimentos fortes. O ano é 2044 e a espécie humana foi substituída por inteligências artificiais que assumiram a maior parte das tarefas e empregos. Durante o processo de purificação, Gabrielle encontra Louis (George MacKay) e sente uma conexão poderosa, como se o conhecesse desde sempre. Um melodrama que se desenrola em três períodos distintos, 1910, 2014 e 2044. (https://www.adorocinema.com/filmes/filme-289724/)