O QUE RESTA DE NÓS? — The Substance (2024)

— SYLVIA PUPO —

A Substância é desses filmes difíceis de ficar indiferente pelo grande impacto – estético e temático – que provoca. Gostando ou não o espectador (que conseguiu ficar até o final) sai do filme impregnado. E pensativo, tentando digerir a experiência, como no meu caso.

Vemos uma ácida crítica aos padrões impostos pela mídia e pela “sociedade da imagem” e ao controle exercido sobre os corpos, especialmente os femininos.

Fala também sobre as inúmeras mutilações – das mais evidentes às mais sutis – a que as mulheres se submetem para se perpetuarem objetificadas como “sonho de consumo” e o preço por isso. Fica evidente a ideia de que o que ainda se espera das mulheres hoje é que estejam sempre lindas, jovens e magras; que sejam doces e sorriam. Mesmo sem dentes.

Neste premiado roteiro, a diretora Coralie Fargeat cria uma fábula de horror para retratar essas pequenas/grandes violências infringidas em nome do reconhecimento. Body horror é seu gênero de terror cinematográfico, que explora o corpo de maneira explícita e grotesca. Aqui abusado, transfigurado, mutilado e aterrorizado/zante.

O filme é “nú e cru”, sem recobrimento erótico que nos distancie do auto conservativo puro. As filmagens em close reforçam essa intenção, criando uma proximidade incômoda, repugnante, com a realidade dos poros e da gordura da pele expostas, nos deixando imersos nos ritmos corporais, na respiração e mastigação dos personagens, nos fluidos escapando dos corpos, nas agulhas penetrando na pele…

A filmagem, “perverso-polimorfa”, é amplificada pelo tamanho da tela e nos impõe uma proximidade incômoda, que não permite um distanciamento recalcado o suficiente dos restos viscerais. A diretora trabalha muito bem com isso.

Como na cena grotesca dos camarões sendo devorados “sem escrúpulos”, pelo empresário igualmente sem. O close nos pelos do bigode encharcados em óleo e nas dentadas reforça a violência desse despedaçamento canibalístico, da falta de mediação pelo outro e a autodevoração, estimuladas por ideais culturais cruéis.

Acompanhamos no filme uma celebridade em declínio que decide usar certa droga do mercado negro, uma substância replicadora do DNA que cria temporariamente sua versão jovem, a “melhor versão de si”.

Demi Moore é Elisabeth Sparkle (não por acaso “brilho” em Inglês), uma atriz em decadência que chegou a ter estampado seu nome de estrela na prestigiosa “calçada da fama” em Hollywood e se torna instrutora de fitness num programa televisivo. Uma espécie de Jane Fonda, atriz que nos anos 80 inaugurou esse estilo e fez sucesso com seus collants asa-delta brilhantes.

Liz, que sempre teve atrelada a si a necessidade de adoração da sua imagem – o que vamos percebendo pelas fotos expostas pela cidade e na sua casa –, entra em choque quando ouve o diretor da emissora (Denis Quaid) dizer: “precisamos aposentar aquela velha”. Precisavam de carne fresca para alimentar os patrocinadores famintos. Mas “o que pára aos 50?!”, ela pergunta. Fase de invisibilidade e desvalia em Culturas que idolatram a juventude e a perfeição onde a mulher, como bem de consumo, passa a ter prazo de validade.

Chocada com a sua demissão, Liz sofre um acidente ao se assustar com a queda do outdoor com a sua foto, sobre seu carro. A sua imagem colapsa, literalmente. A partir daí vemos uma série de crueldades que a personagem vai fazer consigo, inclusive se odiar com desprezo.

É na vulnerabilidade do hospital que surge a oferta dessa “melhor versão de si mesma”, jargão do coaching do discurso neoliberal de produtividade e felicidade, que incide com mais ferocidade e é levado ao limite aqui.

Os homens no geral são retratados de forma grotesca, com uma violência quase asquerosa – tanto física quanto moral – e denunciados por uma masculinidade ridiculamente viril. Decadentes e babões. Nos faz pensar sobre o status que adquire o olhar masculino e o seu poder de “destruir ou construir” uma mulher.

O filme fala sobre o etarismo e o envelhecimento, principalmente das mulheres na nossa Cultura, muito mais penoso do que o dos homens.

Fala ainda, sobre a nossa própria divisão subjetiva e do que somos essencialmente compostos, sobre o que sobra de nós, qual é a nossa “substância”?

Alude à relação que temos com nós mesmos enquanto outro, com o que não é recalcado, com os restos, os resíduos de gozo. Os líquidos, as excreções, os excrementos, as coisas que caem. O cabelo, os dentes, tudo o que vai ficando para trás. Confronta-nos com as finitudes.

Demi Moore está numa atuação esplêndida, no auge da sua beleza aos 60 anos, o que torna o argumento do filme ainda mais cruel. Ela mesma passou por situação parecida ao ser recusada em papéis em Hollywood. Vemos em grande parte do filme seu corpo nu, sem filtros, as estrias incipientes, a perda do turgor e, mesmo assim, uma beleza admirável. Alguns procedimentos estéticos não tão bem-sucedidos na boca e em partes do seu rosto ajudam a creditar veracidade à personagem. Para a diretora, Demi deu um “match” perfeito com o papel.

Filme bastante sensorial, todos os sentidos são convocados para a digestão das cenas. O vermelho é um elemento constante, seja ele central, presente nos corredores da emissora ou no sangue, seja periférico, numa singela bolsinha. O vermelho também pode aludir à certa carnificina, replicada e auto imputada pelas mulheres.

A linda fotografia mostra o contraste das cores primárias e vibrantes. A bela imagem das gemas amarelas no início é um exemplo da plástica capturante do filme.

Quase tudo o que sabemos sobre Elisabeth vem da montagem na calçada da fama. No início a diretora mostra a instalação dessa estrela que, com ao passar dos anos vai ficando rachada, deteriorada, degradada, até quando ninguém mais a nota, pisando nela. Alusão poderosa ao passar do tempo e ao esquecimento. Mas como manter-se lembrado?

Toda vez que vai sair de casa Liz depara-se com a foto de Sue num outdoor substituindo a sua. Imediatamente volta ao espelho para retocar-se, mudar o penteado ou ajeitar o decote do vestido. A cada ida ao espelho as mãos esfregam o rosto com mais força, os gestos ficam mais violentos, denunciando a sua insegurança e a triste e monstruosa imagem da mulher envelhecida, condicionada a se odiar.

A diretora chama atenção para as falas de desvalorização internalizadas pelas mulheres, que nada mais são do que mensagens da misoginia da cultura infiltradas na sua criação.

Em uma espécie de cesárea, o duplo de Elisabeth “nasce” da sua coluna vertebral; as doses diárias garantiriam a existência da melhor versão dela, na condição que as versões jamais passassem mais do que 7 dias ativas.

Sue vai ficando cada vez mais tempo viva, causando efeitos de um envelhecimento acelerado em Liz. “Esse equilíbrio não está funcionando” diz ela, que encarna o desprezo por tudo que não seja nem jovem nem belo, incentivando a falta de limites e a onipotência. A virtude vai ser o equilíbrio, em saber compor as diversas dicotomias internas: “vocês são uma só, não se esqueçam; ninguém pode fugir de si mesmo.”

É justamente a perspectiva desse gozo ilimitado, da negação dos limites e da falta, o que vai empurrar “as” personagens a um final trágico. Já esperado, mas nunca imaginado.

Triste mesmo pensar que tudo acaba.

De fato, o filme é uma experiência subversiva intensa, mas recomendo que assistam e se deixem intrigar por ele.

AUTORA
Sylvia Pupo Netto
Psicóloga Clínica \ Psicanalista – Sedes Sapientiae e Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) \ Clínica privada adolescentes e adultos
E-mail — sylpupo@uol.com.br

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — The Substance
Título português — A Substância
Ano — 2024
Países — França – Reino Unido – E.U.A.
Duração — 141 min
Direção — Coralie Fargeat
Roteiro — Coralie Fargeat
Edição — Coralie Fargeat – Jérôme Eltabet – Valentin Feron
Fotografia — Benjamin Kračun
Produção — Coralie Fargeat – Tim Bevan – Eric Fellner
Música — Raffertie
Elenco — Demi Moore – Margareth Quailley – Dennis Quaid

SINOPSE
O filme se passa no que parece ser uma Los Angeles distópica, na indústria do entretenimento e acompanha uma celebridade em declínio, Elisabeth Sparkle (Demi Moore), cuja idade relegou-a a um programa fitness na TV.
Impactada pela sua demissão ao fazer 50 anos e desesperada por um novo começo, ela aceita testar uma substância que promete transformá-la numa versão mais jovem e melhor de si mesma. Através de um processo de replicação celular, passa então a dividir seu corpo com Sue (Margaret Quailley), seu duplo jovem. Apenas uma regra: uma semana para cada uma. Aos poucos a situação começa a sair do controle e acompanhamos a empreitada surreal na busca insana pela juventude e pela não passagem do tempo.
“A Substância” revela a destrutividade da sujeição desmedida aos ideais e expõe as nossas próprias divisões internas. O filme dialoga também com a cultura atual da drogadição, na qual para tudo se ingere uma substância que vai nos transformar em super-heróis.