IF YOU GO AWAY… — O QUE FICA DE MIM? — Joker – Folie à deux (2024)

— JOANA CARDO DA COSTA —

Joker – Folie à deux, é uma sequela de um primeiro filme, Joker de 2019.  

Numa sociedade com fracos apoios sociais à saúde mental, Arthur Fleck cresceu com uma mãe com uma grave doença mental, delirante acerca da sua paternidade. Exigia-lhe que sorrisse sempre, mesmo quando queria chorar, chamando-lhe Happy. Alvo de violências físicas e sexuais por parte da mãe e do padrasto, chegou a ser institucionalizado. Estes maus tratos acabaram por ser desmentidos retornando à mãe e à casa onde foi maltratado. 

Faz a vida como palhaço, tentando animar festas e crianças hospitalizadas, é frequentemente humilhado e maltratado por colegas e por empregadores. 

É neste contexto que, num dia particularmente difícil, adota uma postura violenta matando 6 pessoas, inclusive a própria mãe. Este comportamento é enaltecido pela população atribuindo a Joker um estatuto de herói e vingador social. A população apoia Joker como representante da falha dos serviços de apoio: a vingança dos humilhados.

Neste segundo filme, Arthur (Joaquim Phoenix) encontra-se preso e à espera de julgamento. A sua defesa tenta alegar doença mental (dupla personalidade), de forma a que seja inimputável e transferido para uma instituição psiquiátrica. Algo que não vai ser possível com a ação perturbadora que estabelece ainda na prisão com Harleen Quinzel, Lee,papel interpretado pela atriz Lady Gaga.   

Este filme tocou-me profundamente através da banda sonora. Como se o filme se desenrolasse num estado paralelo ao real, um musical dark.

Foi dito numa entrevista que Joaquin Phoenix sonhou com o filme que estavam a preparar como um musical e propôs esta ideia ao realizador. Talvez a música nos ajude a entrar melhor na linguagem do sonho, na viagem emocional que este filme propõe. 

O cenário é a mesma cidade de Gotham, a cidade dos eternos confrontos entre o Batman e o Joker da banda desenhada da DC Comics, que podemos ver como uma metáfora da nossa sociedade.

Folie à deux, o nome deste filme, é um conceito usado pela primeira vez por Lasègue e Falret em 1877 (2). Um conceito psiquiátrico que descreve um diagnóstico coletivo, um delírio imposto, normalmente pela mãe, ou por alguém com elevado ascendente sobre a pessoa. Mais conhecido por “Delírio a Dois”, é uma perturbação delirante partilhada, uma síndrome em que há a transferência de delírios psicóticos de uma pessoa doente, o psicótico primário, para uma pessoa aparentemente saudável, o sujeito secundário.

Neste sentido, o nome de Folie à deux estaria mais adequado ao primeiro filme, que se foca na relação de Arthur com a mãe. No segundo filme, com Lee, há uma repetição, uma ideia que volta com a esperança de afeto. Um delírio de que estão no mesmo tom, na mesma música, que ambos sentem o mesmo, numa mesma mente.

O filme começa com Arthur numa situação de grande sofrimento, magro, deprimido, debilitado. Continuando a ser humilhado pelos guardas prisionais de forma acutilante, como sal na ferida. 

Numa ida a uma aula de canto, é encontrado por Lee (ficamos a saber depois que estava naquela instituição de propósito para o encontrar), ela vê-o, ele sente-se visto, como nunca se sentiu visto. Julga ele. Quem é que ela viu, ou quer ver?

Mal sente que está a ser visto, deixa a sua medicação e começa a “sonhar”, a entrar num mundo paralelo.

Ela mostra que o admira, que é igual a ele, que sofreu na infância como ele, que o reconhece e se reconhece nele e diz-lhe que tem seguido a sua história, mas mente-lhe.

Arthur acredita, está sedento de afeto e através da letra da música “For once in my life”, interpretada pelo próprio Joaquin Phoenix, ficamos a saber da intensidade do seu sentir: por uma vez na vida eu tenho quem precise de mim, alguém por quem esperava há muito. Já não tenho medo e posso ir onde me apetecer, sinto-me forte. Posso “sonhar”, tornar os meus sonhos realidade. Nada mais me vai magoar como aconteceu antes, já não estou sozinho, tenho alguém que precisa de mim, existo. E isto ninguém me pode tirar. Desde que saiba que sou amado, eu sou capaz.

Lee desperta-o para o delírio ou para a esperança de ser amado? A doença mental não estará sempre na questão da intensidade de algo que todos sentimos? Será que não é quando mais sofremos que mais precisamos de um afeto que parece delirante para sobreviver psiquicamente? Nem que seja um delírio de amor. 

Lee diz estar apaixonada por Arthur. Mas ela só ama a personagem Joker

Na música “That’s entertainment”, cantada agora por Lee, diz-nos: tudo acontece num certo sítio da mente sem ser verdadeiro, tudo o que pode acontecer numa vida, pode ser um espetáculo, tudo pode aparecer e desaparecer.

Numa das conversas com a sua advogada, esta pede-lhe que seja ele mesmo, que seja o Arthur e não o Joker. Ao mesmo tempo, Lee pede precisamente o oposto.  

Ele não sabe quem é: dissociando-se da sua dor, refugia-se numa fantasia de uma identidade poderosa, ser amado e ser o Joker.

A mãe queria-o feliz para o poder amar, Lee quer amá-lo desde que ele seja o Joker

A música “When you’re smiling” mostra-nos este funcionamento: Quando sorris, toda a gente sorri contigo. Quando te ris, o sol brilha através de ti, mas quando choras, trazes a chuva. Pára de suspirar, continua a sorrir. E no mesmo sentido “Smile”: Sorri mesmo que te sintas mal, pode ser que amanhã o sol brilhe para ti, ilumine o teu rosto com alegria, mesmo que estejas a chorar.

Uma defesa maníaca alimentada pela sua mãe que o faz sorrir negando a sua dor. Um rir que nos aflige pois parece um choro, como um murro no estômago.

Mas o peso da ideia do amor continua, em “Close to you”: ele pode pensar-se especial, bafejado pela sorte, desejado, amado por alguém. Amor este, numa “Folie à Deux”: onde tudo é lindo, lindamente delirante, perigosamente delirante.

Iludidos, querem construir uma “montanha” — “Gonna build a mountain” —, um sonho impossível onde vão ser felizes, negando todas as dificuldades e obstáculos. 

No seguimento deste registo maníaco e omnipotente, chega mesmo a dispensar a advogada em tribunal, quer ser ele o advogado dele mesmo. Convencido que assim se está a defender das humilhações sofridas. Da exposição da fragilidade humana de um homem que julgou ser um herói. Acharam que ele é o Joker e ele também quer convencer-se que é o Joker.

Loucamente assumindo-se como Joker, a montanha omnipotente vai sendo escalada e a certa altura já não consegue suportar o peso da sua defesa maníaca, de estar em falso self (3), invertendo os papéis, negando a sua dor e sofrimento. Cai nele mesmo e numa cena muito tocante assume-se abatido como Arthur. Nesse mesmo momento Lee abandona a sala de audiências, deixando-o como Arthur e novamente só. 

Numa versão inglesa “If you go away” da música de Jacques Brel “Ne me quitte pas”, Arthur fala-nos de um vazio imenso, de um retorno a um vazio primordial onde nada estava. Se tu me deixas, num dia de sol, levas o sol contigo, o bom vai-se embora. Não restará nada no mundo em que confiar, ficará apenas um vazio, um lugar vazio, escuro como a noite onde vou ficar. Descreve-nos o Breakdown (4) em que ficou neste desencontro emocional.

Voltamos à imagem inicial do filme, um homem muito magro a arrastar-se, de cabeça no chão, que acaba por se deixar matar. 

Arthur sentiu poder renascer/existir finalmente quando Lee olha para ele. Winnicott (5) fala-nos da importância do olhar materno na subjetivação do bebé: o bebé só existe quando é visto pela mãe. Talvez Arthur nunca tenha sentido que existia realmente, pois o olhar da mãe psicótica sempre foi, não um verdadeiro olhar mas, aquilo que ela queria ver nele. Ele cresceu simbioticamente com a mãe, obrigando-se a sorrir e a mostrar-se feliz, negando a sua existência e a sua dor. Em falso self foi-se tentando moldar ao desejo do outro para existir. Não estaremos todos, de certa forma e grau, em falso self para existirmos, com medo de deixarmos de ser amados ou enquadrados na sociedade?

Talvez o meu olhar sobre este filme tenha sido o da procura do lado humano da psicose, no sentido da necessidade universal do ser humano de ser amado, e da tragédia emocional quando isso não é possível. O que vejo no outro já não existe ou nunca existiu e o que ele viu em mim, não sou eu. 

Este filme é riquíssimo e poderíamos pensar também mais aprofundadamente na Falha Básica, descrita por Balint (1), naquilo que falhou para Arthur, o que não foi possível no seu início e na relação com a sua mãe. 

O cinema dá-nos múltiplas possibilidades de pensar e de entrar em contacto emocional com as muitas camadas de nós mesmos. Tal como a psicanálise que nos permite, se continuarmos a olhar, ver de outros ângulos e de outras perspetivas.  

AUTORA
Joana Cardo da Costa
Psicóloga Clínica \ Psicoterapeuta \ Psicanalista \ Membro Associado da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP), da International Psychoanalytical Association (IPA) e da European Psychoanalytical Federation (EPF)
E-mail — j.cardo.costa@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Balint, M. (1962). The basic fault. Tavistock Publications. 
2.Lasègue, C. & Falret, J. (1877). La folie à deux. Annales Médico-Psychologiques, n. 18, p. 321- 355.
3.Winnicott, D. W. (1960). Distorção do ego em termos de verdadeiro e falso self. In: Winnicott, D. W. O Ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Artmed, 1983. p. 128-139. 
4.Winnicott, D. W. (1974). Fear of breakdown. International Review of Psychoanalysis, 1, 103.
5.Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Imago.  

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — Joker – Folie a Deux
Título português — Joker – Loucura a dois
Ano — 2024
País — E.U.A.
Duração — 138 min
Direção — Todd Phillips
Argumento — Todd Phillips – Scott Silver – Bob Kane
Produção — Todd Phillips – Emma Tillinger – Koskoff
Musica — Hildur Guðnadóttir
Edição — Jeff Groth
Elenco — Joaquin Phoenix – Lady Gaga – Zazie Beetz – Brendan Gleeson – Jacob Lofland – Harry Lawtey – Catherine Keener 

SINOPSE
Joker: Delírio a Dois, é uma sequela do filme Joker no qual Arthur Fleck, de uma origem familiar complexa, lidava com as suas fragilidades mentais e com uma sociedade cruel. Trabalhava como palhaço, acabando por ser demitido do emprego, e numa reação a essa e tantas outras infelicidades, reagiu numa postura violenta assumindo a identidade de Joker. Esta sequela passa-se depois dos acontecimentos do filme de 2019, após se ter iniciado um movimento popular contra a elite de Gotham City, revolução esta, que teve o Joker como seu maior representante. Preso em Arkham, conhece Harleen “Lee” Quinzel. Lee tinha uma enorme vontade de se juntar a Joker e desenvolvem um relacionamento romântico doentio. Lee e Arthur embarcam numa desventura alucinada, fervorosa e musical pelo submundo de Gotham City, enquanto o julgamento público de Joker se desenrola, impactando toda a cidade e sobretudo a eles mesmos.