MISTÉRIO e ALTERIDADE — My Octopus Teacher (2020)

— JOÃO A. FRAYZE-PEREIRA —

Considerando que Professor Polvo, ganhou o Oscar de “melhor documentário”, em 2021, cabe perguntar – qual é o ensinamento contido nesse filme, consagrado pela crítica oficial e pelo grande público?

Sabe-se que documentário é um gênero audiovisual, não-ficcional, caracterizado por apresentar algum tema ou fenômeno, a partir de um ponto de vista, por exemplo, o do diretor ou da equipe que construiu a narrativa, com o propósito de registrar a realidade que documenta. Entretanto, alguns críticos, sobretudo Bruno Carmelo (1), contestaram o caráter documental desse filme. E os principais argumentos dessa perspectiva resumem-se nos termos apresentados a seguir.

Professor Polvo não é um documentário, mas uma reportagem com alto nível de produção sobre a vivência do cineasta-mergulhador com um polvo. Para isso, são utilizadas diversas equipes de câmera, uma grande quantidade de lentes, além de drones e outros recursos típicos de um projeto de orçamento considerável. O filme acompanha os movimentos do animal, nas profundezas do oceano, numa sucessão de cenas que expõem uma impressionante floresta de algas sul-africana. E com isso atinge o nível esperado dos filmes realizados pela Discovery Channel ou National Geographic.

No entanto, analisando essa produção como obra, também chama a atenção que os recursos utilizados estão entre os mais simples que a linguagem cinematográfica tem a oferecer, como imagens em câmera lenta, uma trilha sonora composta por violinos e um teclado, em adágio, para acompanhar muito pôr do sol e personagens em contraluz; inúmeros planos de paisagens com nuvens aceleradas…

Além disso, o filme é inteiramente narrado pelo mergulhador, durante uma única entrevista, resultando numa série de imagens dele diante da câmera, com falas redundantes em relação às imagens. Ou seja, é narrado aquilo que poderíamos ver por nós mesmos. Mas, o filme supõe um espectador pouco inteligente ou infantil, incapaz de discernir as formas visíveis, impedindo-o de experimentar a mesma surpresa do mergulhador ao se deparar com o seu outro. Nessa medida, a comunicação, embelezada com as imagens, é simplificada para o público que escuta a narração de uma fábula mágica sobre um bicho exótico, tímido e gentil. Em poucas palavras, é um filme que lembra as produções dos estúdios Disney (1). 

Cabe lembrar que o filme, além do Oscar e do britânico Bafta, ganhou muitos outros prêmios, no início da chamada “década dos oceanos”, como observa Alexander Turra, coordenador da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano, sediada no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).

Ora, dado que vários filmes têm se voltado mais intensamente para a preservação da vida nos mares dos quais depende o planeta, talvez, o filme tenha sido tão premiado, por se somar a essa onda de preocupação com os oceanos. E também vale lembrar que, nos créditos finais da produção, é registrada a assessoria científica de uma das maiores especialistas mundiais em polvos, a cientista canadense Jennifer Mather que é psicóloga com formação em Zoologia.

Se Craig Foster passou certo tempo, seguindo um polvo para fazer o filme, a pesquisadora brasileira Tatiana Leite, da Universidade Federal de Santa Catarina, que estuda polvos há 25 anos, passou 10 anos em Fernando de Noronha, pesquisando, com a supervisão da Dra. Mather. Mas, essas referências não foram bem aproveitadas no filme, até porque quase nada nos é informado sobre o polvo como espécie, considerando que há o registro de aproximadamente 700 espécies.

Através do filme, ficamos sabendo apenas que o polvo é um animal curioso, astuto, capaz de se disfarçar para se defender de predadores e também para caçar, um exemplar de pequenas dimensões, se comparado ao tamanho do mergulhador. Mas, nada é dito sobre o fato do polvo contar com 3 corações, com olhos altamente complexos capazes de ver o que está à frente e atrás ao mesmo tempo, com uma potência comparável à acuidade visual humana; nada sobre os neurônios que se espalham pelos tentáculos do animal, nos quais cada ventosa contém milhares de células que desempenham funções de tato, olfato e paladar…

No livro “Outras mentes: o polvo e a origem da consciência”, o professor de filosofia da ciência e mergulhador australiano Peter Godfrey-Smith (2) explora a evolução dos cefalópodes, analisando a sua refinada inteligência, comparável à de certos mamíferos.

Assim, pode-se dizer que, no filme, o polvo permanece relativamente desconhecido até o final. Ele é um coadjuvante do mergulhador que projeta sobre ele os seus afetos. E ficamos sabendo, quase no final do filme, que esse polvo é uma fêmea com a qual o protagonista se relacionou, diariamente, durante um bom tempo, implicação afetiva que se torna explícita, quando ele declara: “Eu me apaixonei por ela” … “Tudo o que eu fazia na época era pensar nela… dominado pelos meus sentimentos… dormia e sonhava com aquele animal”.

Mas, se pouco sabemos sobre o polvo como espécie, também sabemos muito pouco do mergulhador, além da sua “obsessão” pelo animal – termo empregado por ele mesmo. Diante disso, cabe a nós, psicanalistas, cuidarmos para não interpretar o protagonista como se fosse um paciente, pois qualquer interpretação revelaria mais o intérprete, com as suas referências pessoais e teóricas, aplicadas ao personagem, e não o sujeito a ser interpretado. E, nessa medida, estaríamos parodiando o próprio filme que apresenta o polvo segundo o mergulhador e não na sua especificidade animal.

Nesse sentido, lembro que a Etologia, ciência moderna que estuda o comportamento dos animais, reconhece cada espécie como um mistério, uma criação da natureza que levou milhões de anos para vir a ser de um modo específico, mistério que motiva o pesquisador a pensar e a pesquisar. Afinal, como seres enigmáticos, os animais abrem-nos para o desconhecido e, nessa medida, a Etologia define os seus princípios metodológicos – observar o outro (um ser vivo, animal ou humano) em seu próprio habitat, interferindo o mínimo possível para deixar surgir livremente as suas características, o seu modo singular de ser, para, então, descrevê-los, levantar hipóteses, elaborar formas de verificação e interpretação do que é observado, cuidando para que o pesquisador não faça projeções sobre o outro das suas próprias pré-concepções.

O notável Professor Emérito da USP, Walter Hugo de Andrade Cunha (3 e 4), introdutor da Etologia no Brasil, ao longo de sua obra, discorre sobre esses princípios e define que o método é criado no decorrer do próprio processo de investigação, ou melhor, ele é esse processo. Nessa medida, tal princípio vale não apenas para o estudo do modo de vida dos animais, mas também para a pesquisa de situações humanas, desde a observação dos seres sensíveis que estão à nossa volta até situações complexas como as obras de arte e a clínica psicanalítica. Em que sentido?

Ora, se pensarmos através dessa perspectiva etológica ou, mais ainda, da psicanalítica, segundo Christopher Bollas (5 e 6), por exemplo, será preciso ter paciência para observar o outro, deixando-o surgir na sua alteridade, para que o psicanalista ou o etólogo, cada um a seu modo, possa elaborar alguma interpretação.

Poderíamos dizer que tanto na relação com um animal ou um analisando há que se ter um primeiro tempo, isto é, o tempo da experiência, que exige de nós criatividade para elaborá-la, antes que se possa atribuir ao outro qualquer significação.

Em suma, o que se pode concluir sobre esse filme é que o animal retratado não representa um ser real, mas é um personagem de ficção. Nessa medida, ele possui uma forma estética que subverte a imagem poderosa dos polvos, tal como costuma aparecer no imaginário cultural. Seguem-se três exemplos.

O primeiro é a bela xilogravura erótica O sonho da mulher do pescador (1874), criada pelo artista plástico japonês Hokusai. A gravura mostra uma mulher nua, em êxtase, sendo enlaçada e estimulada sexualmente pelos tentáculos de dois grandes polvos. Nessa obra, os animais primam pelas dimensões. E, famosa, tal gravura inspirou um artesão francês a produzir uma pulseira destinada a sensualizar os braços femininos.

O segundo exemplo encontra-se em Os trabalhadores do mar (1866) de Victor Hugo, especificamente no capítulo intitulado O monstro, que se refere ao polvo, caracterizado pela abjeção que, segundo Julia Kristeva (7), pode despertar no leitor sentimentos de medo e atração, estranheza e repulsa.

E o terceiro encontra-se no livro Vinte mil léguas submarinas (1870) de Jules Verne, que inspirou outro filme, produção dos estúdios Disney (1954), dirigido por Richard Fleischer. Esse filme, também ganhador do Oscar pelos efeitos especiais, conta não com um polvo, mas com uma lula gigantesca que persegue e ataca o submarino Nautilus, destacando-se pelas dimensões e agressividade. E esse aspecto não é mera fabulação do escritor ou do cineasta, pois é sabido que as lulas chegam a atingir grandes proporções, muito maiores que as do polvo.

Ora, à luz desse impactante imaginário cultural, pode-se pensar que o pequeno polvo, retratado no filme nos ensina, com delicadeza e seriedade, algo cada vez mais necessário — olhar aqueles que são diferentes de nós com profundo respeito. E talvez seja essa perspectiva a razão pela qual o sábio Professor Polvo encantou multidões.

AUTOR
João A. Frayze-Pereira – Psicanalista \ Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP & IPA) \ Editor da revista Ide-Psicanálise e Cultura da SBPSP (2015-2020) \ Diretor de Cultura e Comunidade da SBPSP (2021-2024) \ Professor Livre Docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (USP) \ Graduação, Mestrado e Doutorado na USP \ Pós-Doutorado em Estética na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris \ Membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e da Association Internationale des Critiques d’Art (AICA). Entre outros livros, publicou Arte, Dor. Inquietudes entre Estética e Psicanálise. Ateliê, 2006 (1ª ed) / 2010 (2ª ed.).  
E-mail — joaofrayze@yahoo.com.br

REFERÊNCIAS
1.Carmelo, Bruno Papo de Cinema, 2021. https://www.papodecinema.com.br/filmes/professor-polvo/
2.Godfrey-Smith, P. (2019). Outras mentes: o polvo e a origem da consciência. Todavia.
3.Cunha, W.H.A. (1965). Convite-justificativa para o estudo naturalístico do comportamento animal, Jornal Brasileiro de Psicologia, 1965;
4.Cunha, W.H.A. (2020). A emoção no compenetrado cortejo: A trilha de formigas como um caminho para descobertas na Psicologia e na Etologia. Coleção SBP-E-books. Ribeirão Preto: Sociedade Brasileira de Psicologia, 2020.
5.Bollas, C. (1999). The mystery of things. Routledge.
6.Bollas, C. (2024). Momento freudiano. Editora Nós.
7.Kristeva, J. (1980). Pouvoirs de l’horreur: essai sur l’abjection. Édition Seuil.

TRAILER

FICHA TÉCNICA
Título original — My Octopus Teacher
Título português — Professor Polvo (BR) / A Sabedoria do Polvo (PT)
Ano — 2020
País — África do Sul
Duração — 85 min
Realizador — Pippa Ehrlich e James Reed
Argumento — Pippa Ehrlich e James Reed
Produção — Craig Foster
Fotografia — Roger Horrocks
Música — Kevin Smuts
Edição — Pippa Ehrlich e Dan Schwalm
Elenco — Craig Foster – Tom Foster – Octopus

SINOPSE
O filme mostra como, em 2010, Foster começou a praticar mergulho livre em uma floresta de algas subaquática em um local remoto em False Bay, perto da Cidade do Cabo, na África do Sul, que é exposto à fria Corrente de Benguela do Oceano Atlântico. Começou a documentar suas experiências e, com o tempo, conheceu um jovem polvo que chamou sua atenção. Ele decidiu continuar visitando sua toca e rastreando seus movimentos todos os dias, durante um ano, para ganhar a confiança do animal. Criou-se um vínculo entre eles. No filme, Foster descreve o impacto que a relação com o polvo teve em sua vida. (https://pt.wikipedia.org/wiki/My_Octopus_Teacher)