SAPIENS PROCURA SAPIENS — Solaris (1972) 

— ANA MÓNICA DIAS —

Numa das suas múltiplas vindas a casa, no intervalo de prolongados internamentos para realizar tratamentos para uma doença oncológica em fase terminal, a sua mulher, paciente em análise, descreve-me um episódio. Naquela manhã regressou mais uma vez ao hospital. A paciente, ao retornar a casa e enquanto mudava as roupas da cama, apercebeu-se de pequeninas manchas amareladas, quase impercetíveis, no lençol de baixo. O que seria? A indagação junto da equipa médica conduziu à conclusão que, face ao sistema imunitário tão fragilizado, o seu corpo teria sido contactado por esporos fúngicos que aderiram aos tecidos e, não sendo eliminados, permitiram que estes se multiplicassem e se reproduzissem, libertando esporos.

Que procuro comunicar nesta experiência vivida na clínica e face ao filme Solaris de Andrei Tarkovski? O que procura a humanidade na exploração espacial? Teremos nós capacidade de contactar um Outro, uma outra forma de vida muito distinta da nossa, um Estranho? Procuramos novas formas de vida, réplicas do humano?  Não existirão, na Terra, tantas formas de vida que nem reconhecemos? Não estará o projeto da exploração espacial cego face ao Outro alienígena porque também os olhos da humanidade estão cegos em relação a si própria? Não será necessário, para vermos o Universo com olhos límpidos, começar dentro de nós, na nossa mente e no nosso inconsciente (alienígena)?

Solaris, baseado no romance de Stanislaw Lem (3), adaptado para o cinema por Andrei Tarkovski em 1972, conta a história de Kris Kelvin, psicólogo, que viaja a um planeta muito estudado, Solaris, com o objetivo de interromper os estudos sobre a ‘solarística’ e as explorações na estação espacial. O único habitante nativo até agora descoberto no planeta: uma substância vasta, sensiente, que ocupa a maior parte da superfície do planeta e que os humanos denominam “Oceano”. O “Oceano” é descrito pelos cientistas e teóricos como incapaz de comunicar com os humanos.  Na estação permanecem três dos seus antigos 85 cientistas: Snout (cibernético), Sartorius (Astrobiólogo) e Guibarien (Fisiólogo). Guibarien suicidou-se pouco antes de Kelvin chegar. Assim que Kelvin chega à estação espacial apercebe-se que os tripulantes são visitados por estranhas figuras e cedo sente uma presença que se intensifica durante o sono. Alguns dias após a sua estadia Kelvin acorda e encontra a sua própria “Visitante”, uma representação da sua ex-esposa Hary, que cometeu suicídio após a interrupção da relação por parte de Kelvin. A princípio dedica muita energia a tentar destruir a figura mas cedo aprende que os “Visitantes” são indestrutíveis e tenta compreendê-los como um discurso, uma comunicação alienígena (2). Os cientistas decidem então bombardear o oceano com ondas cerebrais humanas e enviam um electroencefalograma de Kelvin, numa tentativa de forçar/ajudar o alien a compreender a sua angústia. Os “Visitantes” deixam de aparecer e o próprio “Oceano” parece estar em transformação, formando-se pequenas ilhas na sua superfície. Só no plano final, da Terra para Solaris, percebemos que uma dessas ilhas é a casa de Infância de Kelvin, qual esperança de contato entre Kelvin / Humano e o “Oceano” / o Outro.

Os parâmetros espacio-temporais e as transformações cronotópicas e ideológicas alteradas pela transposição do texto escrito de Stanislaw Lem para o filme “Solaris” mas, simultaneamente, enriquecem a narrativa, fornecendo-lhe uma matriz artística e ideológica (5). Autor do livro “Esculpir o Tempo” (1985), Tarkovski refere que o artista tem de estabelecer uma relação orgânica entre as suas impressões subjetivas e as representações objetivas da realidade, sem o que não conseguirá exprimir nas suas obras qualquer credibilidade, autenticidade ou verdade interna. Esta relação faz com que o cinema, para Tarkovski, seja a arte mais íntima, aspeto que é muito bem sucedido neste filme, envolvendo-nos na angústia dos personagens através da exploração de elementos sensoriais como o som, o jogo de alternância monocromático/cromático, a recorrência do elemento casa, o xadrez do tempo.

Como realizador, Tarkovski desenvolveu um estilo próprio, em que o tempo ocupa um lugar central, daí derivando algumas das suas opções técnicas e estéticas, ao nível da duração dos planos e da montagem (1). A estrutura narrativa e emocional do filme não segue o tempo cronológico, mas o tempo psíquico: a persistência do trauma, o retorno das cenas, a repetição dos afetos. Kelvin está preso num ciclo de culpa e rememoração. O final ambíguo (Kelvin aparentemente retornando à Terra, mas ainda em Solaris) pode ser visto como uma metáfora do aprisionamento no próprio psiquismo.

Em Solaris existe um oceano vivo que materializa as memórias e desejos reprimidos dos astronautas — de forma inesperada, involuntária e traumática. Assim como o inconsciente freudiano, Solaris é um “outro lugar”, sem linguagem própria, que se expressa por meio de imagens e manifestações enigmáticas.

A “Visitante” Hary, pode ser lida como o retorno do recalcado. Kelvin reprimiu a culpa e o luto pela morte de Hary e Solaris procede a essa representação na forma de uma réplica viva, física, mas desprovida de uma história própria — ela é pura projeção psíquica de Kelvin. Este retorno traumático obedece à lógica freudiana “o que foi recalcado retorna”, geralmente de forma distorcida e repetitiva — a ressuscitação insistente de Hary. Hary também pode ser vista como uma figura do duplo, conceito explorado por Freud (6) no ensaio O Estranho. É uma figura simultaneamente familiar e inquietante — não é realmente Hary, mas também não é algo inteiramente novo. A presença do duplo provoca uma crise de identidade em Kelvin, convidando-o a confrontar o seu desejo, a sua culpa e a sua incapacidade de distinguir entre realidade e fantasia. Solaris confronta Kelvin com a materialização de seu desejo (Hary), mas essa materialização não traz satisfação duradoura. Em vez disso, acentua a falta: Hary não é “real”, não tem autonomia, e sua existência reforça a impossibilidade de reparar o passado.

O “Oceano” representa o que está fora da simbolização, que escapa à linguagem e à lógica, e cuja intrusão causa angústia. Ao resistir à compreensão e simbolização, o “Oceano” encarna esse núcleo inassimilável da experiência psíquica.

Do ponto de vista psicanalítico, Solaris é uma representação da mente humana: um espaço onde memória, desejo, culpa e trauma se entrelaçam. O filme não trata da exploração espacial, mas da exploração do inconsciente, dos seus enigmas e limites. Solaris não é o Outro; é o espelho do sujeito.

Finalizo com um extrato de um dos diálogos mais representativos e filosóficos do filme, diálogo que acontece na biblioteca da estação espacial com a presença de todos – Snout, Sartorius, Kelvin e Hary, na voz de Snout:

Ciência? Tolice! Na nossa situação o génio e a mediocridade seriam por igual impotentes.

Dizemos que pretendemos conquistar o Cosmos! 

Na realidade só queremos aproximar a Terra das fronteiras dele. Não nos importam outros mundos. Queremos é um espelho. Estamos na situação idiota de quem aspira a um objetivo de que não necessita.

O Homem procura o Homem! 

Procuramos afincadamente um contato mas nunca o encontraremos!

AUTORA
Ana Mónica Dias
Psicanalista Associada da Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) \ Associação Internacional de Psicanálise (API) \ Federação Europeia de Psicanálise (FEP) \ Formadora no Instituto de Psicanálise.
E-mail — ana.monica.dias@gmail.com

REFERÊNCIAS
1.Carvalho Brás, R.M.C. (2013). Agón, Pathos, Katharsis. A memória das origens nos filmes de exílio de Andrei Tarkovski. Tese de Doutoramento em Estudos e Cultura. Universidade Católica.
2.Helford, E.R. (1992). We are only Seeking Man: Gender, Psychoanalysis and Stanislaw Lem’s Solaris. Science Fiction Studies, Vol 19, Nº2 (Jul 1992), pp167-177.
3.Lem, S. (1961/2018). Solaris. Antígona.
4.Tarkovski, A. (1985/1998). Esculpir o Tempo. Martins Fontes.
5.Vlasov, E., Deltcheva, R. (1997). Back to the House II: On the Chronotopic and Ideological Reinterpretation of Lem’s Solaris in Tarkovski Film. http://www.jstor.org/stable/131564.
6.Freud, S. (1919/1976). O estranho. In Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol 17, pp  275-316; J. Salomão, Trad.).

TRAILER

REFERÊNCIAS
Título original — Solyaris 
Título Português — Solaris
País — U.R.S.S.
Ano — 1972
Duração — 165 min
Realização — Andrei Tarkovski
Argumento — F. Gorenshtein/ A. Tarkovski
Produção — Mosfilm, Chetvyortoe Tvorcheskoe Obedinenie
Fotografia — Vadime Iussav
Cenários — Mikhail Ramadine
Som — Semion Litvinav
Música — Eduard Artemiev
Elenco — Natalaya Bondarchuk/ Donatas Banionis/ Yuri Yarvet/ Vladislav Dvorzhetsky/ Nikolai Grinko/ Anatoli Solonitsyn

SINOPSE
Solaris é um filme de ficção científica do cineasta soviético Andrei Tarkovski. Adaptado de um romance do polaco Stanislaw Lem, o filme apresenta através da odisseia de um psicólogo num planeta, uma série de encontros dos seres humanos com os seus próprios receios e fantasias. Kris Kelvin é um psicólogo que é enviado para uma estação espacial que se encontra na órbita do planeta Solaris. A bordo da estação só restam três elementos dos 85 que integravam a tripulação. Morreram em circunstâncias misteriosas e Kelvin tem de avaliar se a estação deve ser evacuada ou se o planeta, que provoca fenómenos psíquicos estranhos, deve ser destruído. Solaris conquistou o prémio especial do júri no Festival de Cannes em 1972.